A cerveja intelectual

A cerveja intelectual

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Estava escrito “de forte aroma cítrico, com uma paleta de nuances sensoriais frutadas, cor âmbar ou alaranjada, conforme a luz”, parecia aos olhos que seriam notas adocicadas, mas já no aroma se mostrou ampla, complexa e equilibrada. No primeiro gole, aquele impacto entre temperatura, textura, amargor e até o Ph. No segundo gole, um maior entendimento do que estava acontecendo ali, bem embaixo do meu nariz. Como eu poderia saber que uma West Coast IPA seria assim?

Eu e meu paladar estamos em treinamento.

Reconheço “uma nota de amburana” de longe, o aroma amadeirado em uma cerveja recém-aberta! Mas passaria despercebida por uma árvore tão brasileira e importante. Estamos sempre ignorantes em algo neste mundo tão complexo. É preciso escolher de grão em grão aquilo que queremos defender, aprender, dominar. Um dia meu papo estará cheio, mas enquanto isso eu estou estudando, para ser mais completa. Ainda me falta entender melhor a influência da aveia, do trigo, do centeio, da própria cevada e também do milho, do arroz e os outros cereais que compõe o que é e o que foi cerveja no mundo.

Ainda tem um longo caminho para que eu perceba todos os processos complexos de uma fermentação. Faz alguns anos que descobri o que é lúpulo, e ainda provo cervejas que me causam experiências novas. A cada ingrediente adicionado em uma cerveja, tudo muda. Muda o equipamento, muda o sabor. Muda a técnica, múltiplas facetas sensoriais se tornam possíveis. “Só sei que nada sei”. Como é o ditado filosófico.

Em seu livro “O gosto como experiência”, o autor Nicola Perullo traz à tona um debate sobre o aprofundamento do entendimento do paladar. Ele usa da filosofia e da estética para comentar sobre os sentidos, o prazer, o saber e as indiferenças. Com o prefácio escrito por ninguém menos que Massimo Montanari , o livro é uma caixa de sabedoria necessária para quem quer discutir e evoluir no tema paladar.

Nicola Perullo, que há anos questiona-se sobre o Paladar, decidiu, enfim, que deveria colocá-lo na dimensão, aparentemente incômoda, da marginalidade, chegando, porém, a reivindicar a centralidade da marginalidade, o que, além de constituir caráter específico do próprio Paladar, parece um local privilegiado – e não embaraçoso – de extremo interesse heurístico, para repensarmos as nossas colocações e o significado de conceitos confortantes de que normalmente nos servimos. Neste sentido, dedicar tempo ao Paladar pode – como já havia dito – tornar-se intelectualmente subversivo. ” Massimo Montanari

Toda vez que sento para ler o livro tenho que parar, reler, olhar para cima (que é sabeseláporque uma forma que eu uso para ter entendimento da situação) e fazer anotações em meu caderno. Há tanto para se pensar sobre o tema, para perceber sobre o impacto da alimentação em nossas vidas. Nicola já no fim no livro diz “A sabedoria não é acesso suplementar à experiência alimentar, mas a capacidade de reconhecer e compreender, a partir da percepção estética afinada, a emergência, a pertinência ou a concomitância dos três acessos descritos.

É para se ponderar bastante não?

A cerveja do primeiro parágrafo, você saberia qual é o estilo? Se não é “só” uma IPA, pela descrição, seria possível adivinhar? Quem curte a cerveja em um nível Sherlock Holmes, em geral usa e muito do seu intelectual para curtir o momento, a descoberta. Poderia ser uma bitter? Poderia? Mas eu comentei sobre os lúpulos frutados e que era complexa. Elementar meus caros. Precisamos usar a cabeça para algumas charadas.

Para a jornalista Agnès Graurt o conceito de intelectual “Seria a capacidade de cada pessoa tomar decisões, pensar e aprender tanto uma atividade motora como um conceito. ” Já ouviu dizer que tem pessoas que bebem cerveja e nem sequer sabem quais são os ingredientes? Até tenho amigos. Mas é normal. Como disse ali em cima, escolhemos aquilo que queremos desvendar.

Eu não sei como se faz uma calça jeans, detalhes da colheita do algodão, maquinário e tempo para desenhar, desenvolver uma calça. Compro e uso a que for mais confortável e dentro do meu orçamento. Um estudo diz que tomamos 35.000 decisões por dia! Prefiro escolher melhor a minha cerveja do que minha calça.

Mas dias atrás escrevi um artigo sobre cerveja e moda. Descobri que durante séculos roupas vermelhas estavam no auge e eram uma forma da elite se diferenciar. Para isso, colocaram florestas a baixo, buscando pelo pigmento vermelho. Um horror. E a gente se veste apenas pensando em que cores combinam mais com o cabelo, o dia, o evento. E assim as pessoas bebem, pensando apenas se hoje é dia de uma cerveja lager na long neck ou aquele chope gelado.

A cerveja, com a vestimenta do rótulo e design caprichado, com um toque de publicidade e uma jogada de marketing, se tornou aos olhos uma ampla folha em branco, onde há informações obrigatórias, mas existem dados que são pistas ao paladar. Ao olhar uma lata na prateleira, meu cérebro degusta antes todas as informações que existem ali, sejam elas narrativas de uma estória, a estética da lata ou a descrição sensorial. Uma maneira de simplificar questões complexas, apenas com afirmações mais assertivas escritas naquela embalagem.

O que você pensa?

Me parece que todas as pessoas apreciadoras e curiosas que provam as cervejas ditas artesanais hoje em dia, refletem sobre o líquido – mais do que apenas o bebem. Para aqueles que trabalham no mercado cervejeiro, a criatividade, a fome de conteúdo e conhecimento são comuns. Estamos sempre sedentos por esta cultura.

Desenhar uma receita de cerveja é também resolver problemas, ajustar ingredientes, inventar novas técnicas, observar e aprender com as leveduras e reações para cada decisão.

A cultura cervejeira intelectual passa por eu me conhecer, saber o que eu gosto, entender os meus limites, saber o que é arte, o que é ritual. O que pode ser simples, sendo complexo. Não é sobre os abismos que precisamos resolver. É sobre usarmos esse conhecimento para transmitir e compartilhar essa evolução que passa por cima de nós, uma chamada do tempo. Hoje bebemos a melhor cerveja. E o fazemos porque ao longo dos séculos muitas pessoas usaram do seu intelectual para pensar e transformar o que antes era só um mingau. A cerveja foi resolvendo vários problemas e dores da sociedade, com tecnologia, com pesquisa e também com seus sabores e símbolos.

Só de fechar os olhos e meditar por um minuto, acessando os arquivos mentais da minha memória, consigo lembrar dos sabores de uma Cantillon Lambic Rosé de Gambrinus, minha favorita de todas que provei em uma pequena e cultuada cervejaria em um bairro afastado do Centro de Bruxelas, na Bélgica. Eu tenho uma experiência com a cerveja também de forma intelectual. Ou seja, mental. De memória. De experiência.

Ainda sobre o gosto como experiência, Nicola Perullo fala sobre o prazer desnudo, o paladar adulto. E isso passa por compreendermos cada uma das vivências que temos, partindo do lugar onde você está e apenas o seu. Quando usamos da filosofia como exercício, uma forma de nos orientar e nos fazer escolher de forma mais sábia, estamos conquistando um conhecimento que vai nos trazer mais prazer e possibilidades.

A melhor cerveja é a que tem em suas mãos. As sutilezas fazem parte de se emocionar com os significados que estão acontecendo o tempo todo. Mas, principalmente ao vivo e a cores, transmitindo para seu intelecto esse prazer. A cerveja que você descobre, que você comemora, que alenta a vida dos pensamentos e dilemas. A cerveja do primeiro parágrafo? A que você quiser, eu apenas inventei uma combinação que realmente gosto e ainda deixei espaço para construir outros sabores.

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