Não existe uma confeitaria brasileira?

Não existe uma confeitaria brasileira?

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“Não existe uma confeitaria brasileira.”

Essa frase tem ecoado pelos bastidores da confeitaria. Mas, é verdade?

Na minha opinião há confeiteiros que perderam sua identidade, outros tão jovens que preferem nem buscar por ela e outros que decidiram abandona-la. Talvez haja até várias outras justificativas a essa frase.

Atribuem de forma errônea uma ausência de identidade em nossa rica confeitaria para justificar suas palavras e atos, quase que como enterrar nossa identidade doce fosse a única forma de assumir seu “novo trabalho”.

Historicamente a confeitaria brasileira é composta, de novo, na minha opinião, por duas vertentes “originais”: cultura indígena em contraposição a cultura colonizadora.
Sabemos quem ganhou essa, né?

Tão antigas que já perderem sua forma original e servem apenas de contexto histórico para nos situar e avançarmos até nosso momento atual.

A herança deixada no Brasil em relação a confeitaria é nova, como nosso país.

Não há a “enciclopedização” do conhecimento, como aconteceu na Europa, e nem a apropriação do “do it yourself” Norte Americano.

Mas há sim uma identidade de tamanho continental, multi cultural, miscigenada e em construção da nossa confeitaria.

Afinal, identidade é como personalidade: ela evolui e amadurece com o tempo. Se transforma.

Seja dos engenhos e seus deliciosos – atualmente chamados de antiquados – doces de compota (os quais em termos técnicos nada mais é do que a redução da água dos alimentos, aumentando a quantidade de açúcar nos preparos – como no brigadeiro, em ordem de realçar sabores e preservar super safras ou o item por mais tempo).

Seja das colonias italianas com seus cannolis e doces festivos como o panetone, tiramissú e biscoitos.

Seja da mandioca de onde tiramos doces de tabuleiros com um sotaque africano.

Seja das mesas de nossas avós e seus bolos de fubá, bolinhos de chuva e bolos de cenoura.

A confeitaria brasileira existe.

Ela é real.

Mas, ela também muda.

Usar ingredientes brasileiros com técnicas francesas não é a antiga confeitaria brasileira, mas usar dos recursos bem estruturados da confeitaria francesa para valorizar os ingredientes de nossa terra e trazer á tona o melhor deles, é válido.

Torta Caramelos. Massa crocante, creme mascarpone com caramelo, ganache de chocolate 35% cacau (ao leite) de origem do Brasil #Unique e pipocas caramelizadas com toffee. Foto (Facebook: Chef Lucas Corazza)

Afinal, não está no cerne do profissional procurar a melhor forma de trabalhar um ingrediente? Porque então condenar esse esforço uma vez que a globalização nos oferece isso? E por que a fim de justificar essa apropriação de conhecimento tem que se enterrar a cultura antiga?

Se Ofélia estivesse aqui, estaria triste de ouvir isso.

Esse tipo de disputa e frases alarmistas talvez sejam reflexo dessa polarização partidária contemporânea; mas de que servem se apenas desunifica nossa classe?

Não é o Brasil um país formado por dezenas de grandes movimentos imigratórios, país capaz de abraçar as culturas trazidas e dar seu jeitinho brasileiro?

Essa profusão cultural que traz comidas de oferenda com sotaque de nouvelle cuisine e gingado de alemão rígido numa grande e divertida ironia que forma nosso país?

Lembro quanto ri a primeira vez que comi uma punhetinha (bolinho de estudante) no Pelourinho e como surpreendeu quando comi doce de banana pacova em Manaus.

Estranhei quando me serviram cartola em Pernambuco mas lembrei de comer figo em compota com queijo branco em Minas.

Doces árabes vendidos como petit four em padarias por sua longa validade, roscas alemãs na mesa do café do gaudério, quindim para brilhar no céu e um bolo majestoso de nozes com baba de moça no centro de festas.

Não esqueçamos o brigadeiro! Esse, não podemos deixar de lado. Se isso não é brasileiro, nem Deus é.

E assim o Brasil vai, se transformando e amadurecendo sua confeitaria que já foi de doces de alfenin, rosas de coco e doce de abóbora.

Assim, aproveitamos de nossa maior herança: a de receber o novo.

Abraçar o diferente, de ser plural e diverso.

Ovos moles vira pintinho de gema.

Cupcake vira moda.

Vira! Vira! Vira!

Vira crême caramel vira! Vira! Vira pudim.

E assim se transforma.

Acredito que refutar nossa confeitaria e identidade sirva apenas como artimanha fraca sem fim algum. Ao invés de se preocupar com o quanto temos a estudar e preservar de nossa doce cultura.

Argumentos como esses ajudam a decretar o fim da confeitaria brasileira em substituição a toda essa industrialização que nosso setor sofre.

Em que sabores são substituídos por marcas, preparos inteiros se resumem a abrir e fechar latas e assim a mão de obra que antes faziam produtos artesanais e desvalorizada e sem colocação nesse mundo de industrias.

Recentemente ouvi Roberta Sudbrack no evento Food Forum contar sobre sua experiência ao ir em uma cidade em Minas Gerais, famosa por produzir goiabada e marmelada.

Conversando, percebeu que muitos lugares ainda faziam goiabada cascão, mas não viu nenhum lugar que fizesse a tal marmelada, daquelas que iam vender em beira de estrada, sabe?

Perguntou: “E marmelada?”

Responderam: “Acabou o marmelo.”

*Esse texto foi retirado (com autorização) do Facebook do próprio Lucas no dia 29/03/2018 e transformado em artigo para o site da Farofa. As fotos são publicações também do Facebook do chef.

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