É todo 5 de junho que se comemora o dia da cerveja brasileira. Passada a data, comecei a refletir sobre quais são os nossos desafios como mercado, olhando para o setor de artesanais, essa pequena, mas enorme fração da indústria. Demorei mais do que o esperado para conseguir digerir tudo nesse texto. Não tem milagre, é um assunto que a gente vai desfiando, desfiando e quando vê, não tem fim.

Elenquei então, apenas alguns dos desafios que eu vejo mais diariamente. E vale lembrar que não adianta achar que é uma coisa só. Não é, são muitas e tudo ao mesmo tempo. Mas como a gente houve por aí, quem tá apaixonado, tá correndo atrás. E hoje quem está no mercado cervejeiro artesanal tem que ser muito resiliente para persistir. Ou seja, é “business”, mas com emoção.

O consumidor de até cerca de quinze anos atrás não fazia ideia que dava para escolher sabores de forma mais ampla, nem mesmo tinha muita opção. Coisa ou outra já havia passado por aqui e nem tudo é novidades, algumas coisas fazem parte de uma roda que circula o tempo e cada época de forma singular.

Os bebedores “das antigas” não querem perder a memória afetiva de um sabor leve, refrescante e barato. Os geeks cervejeiros atuais são tachados de chatos e frescos. Algumas cervejas viraram artigo de luxo e competem com as adegas cheias de vinhos. Mas ainda é também a bebida dos churrascos, encontros no boteco com frango à passarinho e amendoim. A bebida quer ser democrática e ter alternativa para todos os gostos e bolsos.

Com todas as mudanças que o mercado tem passado nos últimos anos, não dá para deixar de fora as questões mais atuais: a pandemia, a inflação recente e um mercado que cresceu em números de fábricas artesanais, mas não cresceu tanto assim em número de consumidores. Aqui, não trago soluções! Se o mercado não debater junto os diferentes pontos de vistas, só teremos uma resposta, a de cada um.

 

Quais são os desafios que temos agora?

1) Tributação, Incentivos fiscais e o desafio de entender as burocracias brasileiras

Se você ama cerveja e quer fabricar e vender cerveja, primeiro olhe a questão tributária. Veja qual o tamanho que você quer ser. Pra onde quer vender? Hoje a questão dos impostos provavelmente é nossa maior dor. As pequenas empresas pagam impostos gigantes.

Quer vender mais e para mais estados do país? Tem pauta para sua cerveja no Estado? Sabe qual o valor do imposto que você paga antecipado? Já falou com seu contador?

No Brasil é difícil sobreviver até se você faz sucesso, pois questões como o teto do Simples, por exemplo, podem mudar toda a questão tributária da sua empresa.

Sabe qual o payback do seu investimento?

Passou por cima disso tudo? Parabéns, você é resiliente. Abra uma cerveja e ande duas casa.

 

2) Logística, entrega, distância, temperatura

Um país continental, um combustível caríssimo, empresas que não sabem lidar com o produto. O tempo de estradas esburacadas, a temperatura que cozinha as cervejas ou o custo de uma refrigeração são caros demais para algumas cervejarias.

Beber local é beber cerveja fresca e sem custos logísticos, uma das coisas mais valiosas e que ainda muita gente não colocou na conta.

 

3) Insumos e tudo mais que é o pacote cerveja

Tá tudo caro.

E não são apenas os impostos.

Tem crise de grãos, mas tem também a alta de combustíveis, crise energética, dólar nas alturas, etc. As embalagens estão caras ou até indisponíveis. O gás CO₂ tá faltando. Cerveja não é apenas o líquido, é tudo que envolve a cadeia cervejeira e está conectado ao preço final.

 

4) Valor e Preço para o consumidor

Quanto custa uma cerveja e qual o seu valor para aquele paladar?

Quem define o que é bom? Para quem? O consumidor e cada paladar específico, é quem julga. E por isso o trabalho de educação e cultura cervejeira é tão crucial.

Existem algumas perguntas que são sempre feitas “o que é cerveja artesanal” “de onde vem os ingredientes” “por que beber estilos” “por que cerveja artesanal é mais cara” e tantas outras que ainda precisam ser respondidas para cada novo consumidor.

Para convencer o cliente a pagar duas, três, até dez vezes mais caro por uma garrafa com mesmo volume de líquido que outras, é preciso ensinar como enxergar valor nessa experiência gastronômica que até pouco tempo atrás era contabilizada no volume.

A renda do consumidor é crucial nessa conta cheia de variáveis. O beber menos, mas beber melhor é algo que deve ser reforçado, para que faça sentido o consumo de bebidas de maior qualidade, mas também de preço mais alto e de forma mais sensata e responsável.

 

5) Profissionalização do setor

Um setor que busca se profissionalizar está sempre em busca de novidades e inovação, tem mais responsabilidade e também mostra maior segurança.

Houve nos últimos dez anos uma explosão de cursos, desde os mais simples, passando pelas especializações, até cursos que hoje são de formação, bacharelado, tecnológico, etc. Mas será mesmo que somos todos profissionais?

Tem muita gente no mercado que vem de outros setores e ainda “patina” em alguns entendimentos e conceitos. E não é apenas de mestre-cervejeiros e sommeliers que temos que falar. Toda a parte administrativa, comercial, marketing e afins. Todo mundo dentro da cadeia precisa se atualizar, inovar e evoluir o mercado.

Vale citar também que algumas pessoas preferem escolhas desonestas e fazem o mercado sofrer com falta de confiança. Um profissional não vende cerveja sem registro. Um profissional não vende “meia nota”. Um profissional não vende produto adulterado. Tem um outro nome para as pessoas que trabalham desta forma.

Um setor mais profissional é também um setor mais ético.

Um mercado que paga melhor seus profissionais, mantêm talentos.

 

6) Sustentabilidade

Tá aí um grande buraco que separa as pequenas das grandes. Ser sustentável é caro, demanda investimento e muita força de vontade de ir contra as facilidades que a vida moderna instituiu. E temos muito o que aprender quando olhamos para o ecossistema de uma indústria e as escolhas que o futuro já nos cobra.

Quais são as cervejarias de menor porte que já se mostram interessadas em ter a sustentabilidade como fator fundamental? O que é possível mudar agora, no presente? Qual é o valor necessário de investimento para começar a transformação?

Existem alguns exemplos que já podem ser seguidos e algumas soluções mais simples do que se imagina. É preciso vontade e determinação de fazer mudanças, mesmo que pequenas. O futuro vai cobrar essas transformações.

 

7) Pautas contra o álcool. Consumo moderado.

Moderação e saúde. Parece simples, mas a pauta do álcool é bastante complicada.

É preciso entender como fazer uso da bebida alcoólica de forma mais inteligente. São dez mil anos consumindo, mas em quais momentos tivemos tanta inteligência para beber melhor?

A tecnologia melhorou e muito as cervejas com 0% álcool. A indústria já faz muitos produtos com baixa porcentagem e muito sabor. É um passo muito importante ter opções que sejam melhores escolhas e a cultura de um consumo mais responsável.

O combate ao alcoolismo e ao consumo nocivo é atualmente um ponto de bastante importância a ser colocado nas conversas. A cerveja não quer um consumidor doente, não quer um consumidor que vai beber e dirigir e nem quer alguém que bebe e arruma encrenca.

No Brasil tem mais de duas mil pautas contra as bebidas alcoólicas que transitam nas políticas municipais, estaduais e federais. São pautas que em geral, não acompanhamos, mas elas existem e estão sempre a um passo de acontecer.

 

O que fazer?

Pode-se dizer que 20 mil anos atrás o mercado cervejeiro não tinha desafios, mas também não existia. Também dá para contar que na época de Hamurabi fazer cerveja ruim era uma treta de morte.

Só lá pelo ano de 1.000 (d.C.) é que começa mesmo as questões de mercado, quando a cerveja começa a ser produzida de maneira mais comercial.

Por um bom e longo tempo a cerveja não tinha lúpulo. Não tinha debate sobre IBU e nem ninguém reclamando de Citra & Mosaic. No século XVI, tem leis interferindo na produção e controlando quais ingredientes podem e quais não podem. Bem mais restrito que hoje em dia.

Apenas a partir do século XVII é que os grãos ganham tecnologia de malteação e com isso uma gama nova de possibilidades. Medições e protocolos complexos não existiam. Não tinha Lager de massa antes do século XIX, mas não tinha cerveja Lager nenhuma também.

O desafio da refrigeração é também algo grande e problemático. Não existia antes do século XVIII, e ainda sim fizeram cerveja por milênios. Já no século XX, teve lei que proibia a produção, a distribuição, comercialização e consumo de bebidas alcoólicas, em todo lugar e a qualquer hora.

Imposto, sempre teve. Sempre terá.

A cerveja vive em uma ampla cultura de consumo, com diferentes abordagens, públicos, preços, sabores e jornadas. E sempre terá os desafios que são inerentes da sua época. A gente não vive muito mais do que um século, a cerveja está por aí a milênios. Nós vamos, ela fica. Então, temos que navegar todos os desafios e ir cortando as ondas e problemáticas.

Se beber melhor está na moda, os desafios são a alfaiataria.

 

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