O choro é livre

O choro é livre

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O estômago rugiu de fome. É um relógio. De hora em hora quer algo diferente. Exigente ele. Até parece que o mundo vai parar se a gente não alimentar essa fera. E vai. É perto do meio-dia e a praxe humana é almoçar. Vou para a cozinha. Ação cada vez menos usada pela nova geração. Gosto de comidas não embaladas. Tenho prazer em descascar, cortar, picar, bater, talhar e suturar meu alimento.

Às vezes me pego pensando em como o ser humano vai se comportar daqui algumas décadas. Tudo será embalado ou feito fora de casa? Alguém vai cozinhar? Vamos “passar” o café? O pão com manteiga na chapa será real? Meu desespero é o seguinte, não é só comer. No sentido de buscar vitaminas ou energias para abastecer esse sistema inteligente que chamamos de corpo. Não é sobre encher a pança com açúcar em forma de pasta. É muito, mas muito mais profundo.

É sobre lacrimejar. Sobre emoção, amadurecimento. Etapa, camada a camada. É sobre a cebola, e o choro livre. O tempero da vida é a curiosidade, a descoberta. Depois, termos poder sobre aquilo que fazemos e evoluir para fazer melhor. Fizemos isso com a gastronomia. Evoluímos de tal maneira, que podemos hoje prestar mais a atenção aos pequenos detalhes, pequenos diamantes do prazer.

Vou ao mercado mais próximo e vejo uma pilha dourada de bolas de natal. É inverno e não faz sentido serem natalinas. Chego perto e é cebola. Na pilha ao lado, formas ovais e mais achatadas encantam pela cor roxa. É a cebola que leva o nome da cor. Tem algumas pequenas échalotes penduradas em saquinhos de tecido. Tem cabeça de alho que pensa melhor que muita gente. A pluralidade da natureza me encanta. Escolho a que vai ficar mais tenra e saborosa na sopa que vou fazer. É simples assim.

Chego em casa, lavo às mãos para o ato cirúrgico. Puxo a tábua de madeira para a mesa. Pego a faca grande, passo na pedra. Dica simples e imprescindível, tem que estar afiada e perigosa. Corto bem na ponta, desfilo a faca pelo vestido marrom brilhante e venho puxando essa capa até encontrar o corpo branco. Arrumo a meia lua, organizo os dedos e com um movimento de frente e traz rápido e faceiro com a faca, talho o primeiro pedaço. Falta muito e gosto de uniformidade no meu tempero. Acho uma preguiça terrível encontrar cebolas mal cortadas na comida.

Mas é buscando essa perfeição ou até mesmo cortando de qualquer jeito que a emoção toma conta de mim. Sou obrigada a chorar e salgo com meu tempero a comida. Não é Sazon, são nossas lágrimas que dão o Umami a refeição.

O choro é livre, mas cuidado para não salgar a boia.

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