Ode ao cachorro-quente do Barão e do Alex

Ode ao cachorro-quente do Barão e do Alex

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Ele já estava há muitos anos instalado na esquina próxima quando nossa família mudou para a casa nova, no fim dos anos 1980. Eu não sabia, porque na época tinha apenas 10 anos; não saía na rua na hora em que aquele senhor de uns 50 anos, cavanhaque ralo grisalho, colocava sua barraquinha vermelha e branca lá.

Normalmente, acontecia por volta das 11h da noite. Um pouco mais cedo se tivesse jogo de futebol no estádio da cidade, a poucas quadras dali. Esticava até 2h ou 3h da madrugada, dependendo do movimento e de quem parava pra conversar.

Quando seu time alvinegro perdia, era comum passarem carros com a janela aberta e alguém com metade do corpo pra fora, gritando:

– Chuuuupa, Baiano!

Que era prontamente respondido com o tradicional:

– Vai tomar na emenda!

Se houvesse mulheres ou crianças presentes, ele engolia a provocação calado.

E sim, a barraquinha era chamada “Cachorro-Quente do Barão”, mas os clientes que o conheciam o chamavam de Baiano. Adolescente, fui apresentado a ele por meu irmão, tricolor doente, frequentador do estádio quando seu time jogava, e cliente assíduo.

A primeira vez que fiz um pedido, estava um pouco nervoso. Sabia que ele tinha muito orgulho do seu molho – um caldo com pimentões vermelhos e verdes, tomates e cebolas elogiado e pedido por todos os clientes – mas na época eu não comia nada daquilo.

Cachorro-quente levava ketchup e pronto. Era uma comida conhecida, aprovada e segura, desde que ficasse dentro de certos parâmetros. O pão era macio e a salsicha um pouco esquisita, esponjosa, mas de textura também aceitável.

As vidas dos portadores de desordens alimentares não são fáceis, ainda mais quando crianças/adolescentes. Ainda mais em décadas passadas, quando não havia conscientização alguma sobre o tema. Havia apenas o estigma – ainda muito presente – de “frescura”, “besteira”, “ah, se fosse meu filho ia comer tudinho sem falar um ai” (a culpabilização básica da mãe). A sensação de culpa por não conseguir tolerar nem em pensamento o que outros adoram ter no prato.

Pedi dois cachorros-quentes. Quando ele aproximou a colher do molho, falei completamente sem jeito:

– Pode fazer sem molho, por favor?

Ele me olhou por um instante. Sem demonstrar estar ofendido, sem julgamento, apenas tentando determinar por que eu parecia envergonhado de fazer aquele pedido.

– Posso colocar um pouco do caldo? É muito bom.

Hesitei, mas concordei. Ele pegou uma colher e cuidadosamente encheu somente com o caldo avermelhado, retirando pacientemente os pedaços de cebola, pimentão e tomate que se intrometiam.

Terminada a operação, passou às outras opções de ingredientes. Convenceu-me com relativa facilidade a incluir a batata frita palha. Texturas crocantes eram definitivamente bem-vindas e batata palha estava presente em outros pratos que eu gostava, como strogonoff (à brasileira) e fricassê de frango. Para garantir que as batatas não ficariam caindo a cada mordida, uma leve camada de ketchup e maionese.

Não é exagero algum dizer que foi o melhor cachorro-quente que tinha comido até aquele dia. E ele viu a transformação ocorrer bem diante de seus olhos. Virei cliente assíduo. Voltava das eventuais saídas noturnas com amigos e fazia um pit-stop antes de ir pra casa, ou quando estava em casa assistindo filmes freneticamente, fazia uma pausa pra ir buscar “o de sempre”. Chegava lá e ele já recitava:

– Dois, só no caldo, maionese e batata palha.

Não demorou muito a me convencer a incluir milho cozido no pedido. E ovo de codorna. Depois, ervilha. Até que, um dia, decidiu perguntar:

– Mas por que você não gosta da cebola, do tomate e do pimentão?

Expliquei que gostava dos sabores, mas a textura meio borrachuda deles é que me incomodava.

– Mas isso é porque você vem muito cedo, eles não estão cozidos totalmente. Vem aqui lá pras duas da manhã que você vai ver como fica.

E, na noite em que fiz isso, ele fez pra mim pela primeira vez o seu cachorro-quente “completo”. Após horas no fogo, as cebolas, os pimentões e os tomates estavam praticamente se dissolvendo no molho, a essa altura bem mais grosso que o caldo a que eu tinha me acostumado. Era um outro patamar de sabor sendo alcançado.

Outra vez, me ensinou o passo a passo de como fazia o molho – incluindo as pitadas de açúcar pra controlar a acidez do tomate, que eu, completo analfabeto culinário à época, achei bizarro. Os papos a essa altura se estendiam por horas, passando por todo o tipo de anedotas, filosofias de vida. Quando me tornei repórter, contava pra ele algumas das barbaridades que via no dia a dia…

Um dia, Baiano anunciou que iria se aposentar da barraquinha. Tinha perdido a mãe, já bem velhinha, andava triste e sem disposição. Como também morava na vizinhança, nos víamos esporadicamente, os papos reduzidos ao prático “como vão as coisas?”, “tudo bem”. Um dia soube pelo meu irmão que ele havia morrido, se bem me lembro, de doença cardíaca.

A esquina ficou vazia por mais alguns meses. Uma noite, voltando da faculdade ou do trabalho, notei a barraca. Era de metal, com chapas de plástico brancas e a inscrição “Alex Lanches”. Cheguei lá e puxei papo, com um sorriso:

– Sabe que essa esquina aqui tem uma tradição que você tem que honrar, hein?

Ele riu.

– Claro, pô. Grande Baiano.

– Então mostra aí o que você sabe fazer.

 

Alex mantinha dignamente a tradição. Começava a cozinhar o molho horas antes de se instalar na esquina. Além de milho, ervilha, ovo de codorna e batata palha, também oferecia cenoura e beterraba, que tentei, sem sucesso, incluir. O queijo parmesão ralado acabou sendo o último ingrediente do meu novo pedido “de sempre”.

Alex rapidamente trocou de barraca para um trailer com mais do que o dobro do tamanho. Contratou dois ajudantes. Depois mais um. O carro do jornal, em vez de me deixar em casa na saída dos expedientes noturnos nos plantões como editor, já me deixava na barraca, ainda de terno e gravata.

Conversava com Alex e os ajudantes sobre as notícias do dia, falava de economia, elogiava a maneira como ele conduzia a equipe, com uma distribuição por estações que lembrava a do McDonald’s, e desandávamos a falar do que as lanchonetes fazem de certo e de errado… Da última vez que o vi, depois de quase cinco anos afastado, tinha adquirido um ponto comercial, em frente ao local onde o trailer ficava. Reconheceu-me na hora, e lembrou do meu pedido sem hesitar. Saí da lanchonete dele mais feliz do que de muitos restaurantes caros que visitei.

Não, essa história não tem uma moral. Ou talvez tenha até mais de uma. Mas não cabe a mim determinar qual – ou quais.

 

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