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A tia da cerveja

Antigamente, eu acreditava que era da área de Humanas. Curtia humanos, festa, aglomeração, uma pista de dança cheia, calor, verão, amor no coração. Cerveja ultra gelada e se tivesse pedacinhos crocantes de gelo, ainda melhor. Podia também ser vodca, podia ter bala, leite condensado, desde que houvesse gelo. Pedia cerveja pela coluna de preços e nunca pela de marcas. Sabia as marcas, escolhia a que me parecia ter menos amargor. Não me importava se a garrafa era verde, se era transparente, se era marrom ou se era uma lata.

Naquela época, eu me incomodava com as propagandas, cheias de corpos femininos entregando cervejas a um cara que estava longe de ser uma persona da vida real. Mas continuava pedindo a cerveja, porque eu curtia o produto e não a propaganda. Era o que eu sabia que tinha e o que eu podia ter. Era sempre a melhor cerveja, amigos, petiscos fritos, madrugadas em conversas e risadas e calçadas de bar.

O sentimento de tempo e antiguidade tomou conta de mim. É como se o mundo tivesse virado uma chave e não sei ao certo dizer quando isso foi. De repente e não mais que de repente, não sou mais essa menina que habitava em mim. Quando eu percebi, não ligava para canecas congeladas. Não tinha a menor vontade de batidas sabeládoquê com sabor de tutti-fruti e álcool que corrói meu fígado e pinica minha língua.

Pela manhã, escaldo minha xícara e com alegria executo todas as medidas em série para fazer o meu café, especial. A cerveja que mora na minha geladeira não é de um só sabor. Não é de uma só embalagem e nem apenas só de um conglomerado. Na verdade, estão todas lá, convivendo em harmonia, como um condomínio etílico. Amadureci o meu paladar, atualizei as minhas diretrizes ou apenas elitizei o meu cardápio?

Atualmente, eu acredito que sou da área de Exatas. Não apenas porque sendo essa pessoa responsável eu preciso ter mais controle das coisas e da situação, mas porque a matemática é uma ciência que traz muito prazer quando olhada bem de perto. As respostas estão em ter paciência, pesquisa e percepção.

Ultimamente eu leio livros que não entenderia os conceitos 10 anos atrás. Faço reflexões sobre a sociedade, consumo, ética, estética e política. Foi apenas com o tempo que ganhei assertividade em algumas escolhas, mas é também ele que ainda me faz errar.

Envelhecer é fatigante!

Minha geladeira cheia seria o sonho dos 20, a realidade dos 30, mas é apenas um volume aos 40. Eu sou a tia da cerveja. Estou mais na teoria do que na prática. Além disso, faço escolhas melhores, tenho prazeres sensoriais por entender cada milímetro cubo do líquido. Na alegria de uma acidez equilibrada ou na tristeza de um diacetil. Na saúde de uma boa fermentação ou na doença de uma péssima contaminação. Na riqueza de uma RIS ou na pobreza de uma Lager. Eu voto por entender esse relacionamento.

Eu sou a tia da cerveja olhando os xovens dessa geração chegando no mercado de trabalho. O sonho de trabalhar com CER-VE-JA. Eu tive essa sensação. Os amigues vibram. Todo mundo acha que vai beber de graça. Os rituais do churrasco, as baladas dos festivais. O mundo cervejeiro parece um silo de malte com um globo espelhado entre luzes piscantes, no universo de Ceres. As perguntas sem fim, as descobertas de novos grupos de consumidores que nunca se questionaram sobre como surge o álcool e de repente estão falando sobre Pasteur e cervejas enviadas em navios e se tornando mais lupuladas.

Eu sou a tia da cerveja quando penso algumas vezes antes de beber o próximo copo. Quando separo o que é trabalho e o que é diversão. Quando imponho os limites. Quando dou conselhos cervejeiros. Sou aquela “velha amiga do mercado”. Conto as histórias de quando me formei “ Era uma vez, no mercado cervejeiro nacional e tropical, um curso alemão de sommelieria”. Talvez eu seja uma dinossaura cervejeira, mesmo sabendo que esse título é extremamente exagerado, sempre curti brincar com essa analogia. Sou mãe também e meu filho já tem quase 15 anos, mais tempo do que eu tenho de cerveja, tenho de maternidade. Isso também é um fato importante pois tenho outras responsabilidades atreladas.

Hoje em dia mais do que falar sobre água, malte, lúpulo e levedura, tentando catequizar consumidores, sou a tia da cerveja porque quero refletir sobre os assuntos que os mais novos não querem tratar. Os que chegaram a pouco tempo, muitas vezes não tem maturidade, não tem vivência ou apenas não entendem. Faz alguns anos onde nas enquetes cervejeiras muito se lia “o mercado precisa amadurecer”, o mercado precisa “se unir”. Mas nós éramos jovens, como mercado.

A cerveja tem cerca de 10 mil anos de história, e nunca teremos, nesta única vida de agora, a chance de descobrir sobre tudo. Possibilidades mil, histórias e estórias contadas como mitos. Mas faz parte da vida entender tudo isso e se agarrar a coisas que podemos e devemos ajudar a evoluir. Não é só de gosto que vive a cerveja. É de debates, adultos, reflexões, ações e reações, sejam elas dentro do tanque ou dentro da sala.

Minhas rugas devem chegar antes de novos estilos.

A Catharina Sour é tipo aquela sobrinha que a gente viu nascer, fala bem dela, vibra com todas as conquistas e vai ganhar o mundo assim que evoluir e passar todas as fases e desafios que tem. O Brasil já pariu algo para ser escrito na história cervejeira do mundo. Mas é preciso continuar criando.

Quanto mais entendermos nosso povo, nosso copo, quanto mais nos unirmos em gerações, quanto mais cedo a gente conseguir falar sobre a cultura cervejeira, as responsabilidades do consumo, a sustentabilidade do processo, as escolhas sensoriais, teremos as melhores cervejas possíveis.

Eu sou a tia da cerveja porque entendo que minha relação com o mercado, atualmente, é o de olhar essa janela e continuar buscando a melhor relação possível, madura e verdadeira com o tempo que vivemos. O comportamento faz parte desses aprendizados.

Temos tanto a falar, senta aqui com a tia.

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