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Farofa de mãe

Farofas. Foto: Rogerio Volgarine

Farofas. Foto: Rogerio Volgarine

Logo ao chegar no portão, sinto o cheiro do pêssego em calda que me espera. Sobre a mesa da cozinha, um pão de banana ainda quente, uma chaleira com chá de maçã, xícaras desenhadas com borboletas coloridas, colherinhas antigas sobre uma daquelas toalhas de plástico desenhadas com aquelas mil frutas, como antigamente. Ao lado do fogão, a bengala apoiada. Ela abre os braços para me receber com o único abraço que me faz sentir segura no mundo. Aos 88 anos, por nada nesse mundo, deixa de fazer o que mais ama: receber os filhos e os netos com alguma delícia preparada por ela. Sabe o que cada um gosta.

Mesmo com as mãos trêmulas e os joelhos não tão firmes, ela vai pra cozinha e faz a alquimia do amor sem receita. Minha mãe tem todas as receitas de cabeça. Nenhuma anotação. Em nossos encontros, gosto de reviver minha infância com meus irmãos no quintal da nossa antiga casa. Na casa onde corríamos pra pegar os coelhos e os pintinhos que nasciam.

O Natal era celebrado embaixo de uma parreira plantada pelo meu pai, quando mudamos do interior do Rio Grande do Sul para Porto alegre. A mesa era um grande tapume de madeira sobre cavaletes no chão de terra batida. Minha mãe é do tempo em que não existia fogão a gás e as roupas eram passadas com ferro a carvão. Tudo era plantado por ela nos fundos de casa e em volta – não tinha flor que não vingasse.

Hoje, fala-se em Panc´s: minha mãe é uma enciclopédia viva de Panc´s. Fazia garrafadas pra curar tudo, até nossas verrugas nos dedos tinha a planta certa. Na páscoa, colhíamos a marcela para o chá do ano seguinte, tomávamos com gemada feita com ovos do nosso galinheiro. Me aconchego na mesa e, entre um gole do chá de maçã e uma mordida no pão de banana com nata, peço pra ela me contar como eu era quando pequena.

Relembra que eu gostava de usar as pétalas de flor nas unhas pra fazer de conta que eram pintadas. Era a rainha de encher o nariz com flores, ao ponto de um dia ir parar no hospital por enfiar uma pedra junto.

Lili ilustrada por Camila Gray

 

Não tinha lembrança desse feito. Achava que era minha irmã quem tinha feito essa traquinagem. Ela, então, me conta que subíamos, eu e meus irmãos, no pé de canela pra fugirmos da varinha de marmelo por termos feito alguma travessura.

A árvore de canela, hoje com mais de 60 anos, era de onde minha mãe tirava os paus que usava pra fazer as compotas no fogão a lenha. Conta que gostávamos de ficar no balanço que meu pai prendia com cordas amarradas entre o pé de goiabeira e a bergamoteira, em meio à plantação de cana de açúcar, limoeiro, pessegueiro, cenouras, couves… De tudo, fazia muda, plantava e vingava. É assim até hoje. Embora já não viva na nossa antiga casa, ela continua plantando e florindo o jardim. Apoia a bengala de lado e faz a sua mágica. Nos intervalos. faz panos de prato com barras em crochê com linhas coloridas. Me lembra de onde vem minha paixão pela cozinha.

Brincávamos do faz de conta no fogãozinho improvisado feito pelo meu pai. Pegávamos a brasa do fogão a lenha e um pouco da comida que ela nos dava direto das suas panelas.

O faz de conta num instante se transformava num mundo mágico real. Adorava pegar um pouco dos doces e terminar o preparo como minha mãe fazia naquele enorme fogão de ferro. Quando ela me conta desse mundo mágico da minha infância, no alto daquele morro, onde a cidade vista lá de cima era um mundo paralelo que pouco tínhamos acesso, minha admiração por ela é gigantesca.

Gostava de vê-la fazer a manteiga e, quando não tínhamos, passava gordura de porco e polvilhava com açúcar sobre a fatia grossa de pão saído do forno. Minha mãe não sabe o que é sem glúten, sem lactose, sem açúcar. “Agrotóxicos” era palavrão.

Refrigerante fui conhecer aos 15 anos. Picolé era feito de ki-suco. Quem lembra? Pra nós, era diversão garantida, dia de festa, ficar com a língua colorida…Sentamos embaixo de um limoeiro, peço pra ver o único livro de receitas que ela tem. Um exemplar da Dona Benta de 1955. Páginas amareladas, furos de traças, aquele perfume ao abri-lo, é como entrar num túnel do tempo. Peço pra ela ler uma receita (tem o video aqui: https://youtu.be/9zYU8V1xwik). Falo que ela vai aparecer em um vídeo. Ela prontamente mergulha dentro do livro e se transforma na Dona Benta. Mãe, minha Dona Benta, minha calda de especiarias mais doce do mundo, minha árvore frondosa, meu melhor abraço perfumado de alfazema. Minha mãe é vintage!!

 

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