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MM´s cervejeiros: Milho, Malto e Malte

Sejamos um pouco Hipócrates, eu levo com humor a história do milho na cerveja. Penso que depende muito da personalidade e filosofia de cada um, mas acredito que muito dessa história de milho na cerveja é pra boi dormir.

Quando o dito pai da medicina, Hipócrates, escreveu sobre o corpo, saúde e medicina, uma dessas teorias falava sobre nossos humores e as substâncias do nosso corpo que precisam estar em equilíbrio para vivermos bem. Bom, de alguma forma eu fiquei com as duas histórias na cabeça. Porque será que o milho é uma questão tão forte no discurso de quem bebe cerveja? Poderia dizer que é mimimilho, mas já usaram essa piada antes. Estou em busca desse equilíbrio bem humorado sobre o tema cervejeiro.

Façamos assim, me deixe tentar convencer você a abandonar esse mito do milho, é será menos um peso nesse paradigma cervejeiro para carregar. O que importa é o produto final que está no seu copo, com qualidade e saúde. Ao longo dos últimos milênios o que não faltou foi evolução da forma e técnica, além dos insumos, para fazer uma cerveja. No fim do dia a gente só quer uma “gelada”, e nem sempre uma “puro malte”.

“A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil.”

— Hipócrates

Desde quando existe demonização do milho? Fiz uma pesquisa no Google Trends e reparei que foi a partir de setembro de 2009 que começou a surgir maiores buscas do termo cerveja com milho, tendo um pico em 2016.

 

Fiquei ainda mais curiosa e ampliei um pouco a pesquisa, fiz um comparativo entre:

Cerveja com milho x milho na cerveja x puro malte

Parece que a forma como as pesquisas sobre o assunto são feitas mudou um pouco de figura não é mesmo? Puro Malte virou um símbolo de qualidade? Mas isso vale para a pequena bolha de cervejas artesanais? Se você está lendo esse texto, provavelmente está dentro da bolha 😉

E como se comporta isso no mapa do Brasil? A região sudeste busca sobre a bolha e o país busca sobre a tendência? Isso aqui dá uma tese de mestrado, mas estou preocupada apenas com este pequeno texto no momento.

Antes de 1700 (d.C) muitas cervejas eram feitas de milho, como explica Stan Hieronymus  (autor norte americano bastante conhecido por suas publicações), neste livro lançado em 2016, o Brewing Local: American-Grown Beer (AQUI). Ele escreve sobre as cervejas dos povos nativos americanos que usavam maize, o milho, para fermentar suas bebidas . Ou seja, não é nenhuma novidade usar o insumo na receita de cerveja então qual o problema?

Segundo o sociólogo Carlos Alberto Dória, a ideia de que o milho era visto como alimento de animais é um claro símbolo de marcadores culturais. Milho e mandioca fazem parte da alimentação brasileira de forma intrínseca (DÓRIA, 2021). Ana Rita Suassuna em seu capítulo no livro que Dória organiza “O milho na alimentação brasileira” lembra de um popular aforismo sertanejo, que diz “do milho tudo se aproveita, do pé ao cabelo”, para mostrar a importância que este alimento tem em nossas vidas. Ana ainda comenta que a demanda por milho cresceu muito nas últimas décadas e as indústrias de cosméticos, fármacos, têxtil, química, combustão e ração animal (a mais expressiva), exigem produção contínua durante o ano todo.

Se usamos o milho para tudo e em tantas coisas, o porquê de incomodar na cerveja ainda me incomoda. Somos o maior país exportador de milho do mundo, e o milho hoje é uma comodityPor isso acredito que a maior e mais importante dúvida surge em 2007, quando foi liberado pela CNTBio a comercialização de milho transgênico no Brasil (AQUI). Mas não é esse o argumento que vemos nos comentários perdidos por aí.

Até 45% milho na cerveja

Em 2013 surge uma pesquisa feita pela então doutoranda em ecologia, Silvia Fernanda Mardegan da USP, e que fala sobre o uso do milho na cerveja. Na pesquisa que fez, Mardegan testou mais de 70 marcas de cervejas comuns e descobriu que algumas ultrapassavam a permissão de 45% do uso de cereais não maltados (inclua aqui o arroz) (AQUIAQUI e AQUI). Isso gerou desconfiança e na época, os rótulos de cervejas não precisavam que os ingredientes estivessem descritos, como são hoje.

A última atualização que temos é na Instrução Normativa Nº 65, de 10 de dezembro de 2019, ela mantém os parâmetros anteriores que estabelece os padrões de identidade e qualidade para os produtos de cervejarias nacionais. A cerveja precisa ter 55% de malte para ser considerada cerveja e permite que tenha 45% de adjuntos. Segue parte do texto:

Art. 4º Malte ou cevada malteada é o grão de cevada cervejeira submetido a processo de malteação.
§ 1º Malteação é o processo no qual o grão de cereal é submetido à germinação parcial e posterior desidratação, com ou sem tostagem, em condições tecnológicas adequadas.
§ 2º Extrato de malte é o produto seco ou de consistência xaroposa ou pastosa, obtido exclusivamente do malte.
§ 3º O malte de cevada pode ser substituído, na elaboração de cervejas, por seu respectivo extrato.
Art. 5º Qualquer outro cereal apto ao consumo humano como alimento, exceto a cevada, submetido a processo de malteação, deve ser denominado como “malte de (seguido do nome do cereal que lhe deu origem)”.
§ 1º Denomina-se “extrato de malte de (seguido do nome do cereal que lhe deu origem)”, o produto seco ou de consistência xaroposa ou pastosa, obtido exclusivamente do malte de cereal definido no caput.
§ 2º O malte de cereal definido no caput poderá ser substituído por seu respectivo extrato.
Art. 6º Adjuntos cervejeiros são as matérias-primas que substituam, em até 45% em peso em relação ao extrato primitivo, o malte ou o extrato de malte na elaboração do mosto cervejeiro.
§ 1º Consideram-se adjuntos cervejeiros a cevada cervejeira não malteada e os demais cereais malteados ou não-malteados aptos para o consumo humano como alimento.
§ 2º Também são considerados adjuntos cervejeiros o mel e os ingredientes de origem vegetal, fontes de amido e de açúcares, aptos para o consumo humano como alimento.
§ 3º A quantidade máxima empregada dos adjuntos cervejeiros definidos no § 2º, em seu conjunto, deve ser menor ou igual a 25% em peso em relação ao extrato primitivo.

Mas e o rótulo hein?

Em 2018 as coisas começaram a mudar e novas exigências foram feitas sobre rotulagem para as fábricas de cerveja. Em 2019 o cerco apertou, mas é só no final de 2021 que vamos ver as mudanças de forma concreta. No site Advogado Cervejeiro tem um texto ótimo com todos os detalhes: ROTULAGEM LEGAL – ATUALIZADA!

Quando você pegar uma cerveja, leia o rótulo, você pode descobrir que a cerveja tem milho, mas não como cereal não maltado, como açúcar, assim como o açúcar de cana. E que tá tudo bem, prove e brinde.

Malto – não é o vilão do milho

Engraçado que quando vamos pesquisar sobre esse insumo, nos deparamos majoritariamente com embalagens para quem vai na academia malhar e ficar forte. Já daí podemos sacar o que quer a cerveja, ficar fortinha, musculosa, encorpada.

 

A fórmula de uma molécula de maltodextrina

Na cerveja a maltodextrina não é fermentável pelas cepas de levedura que usamos, e por isso garante que tenha mais corpo, mas não traz novos sabores, é mais neutra que muita gente. Também não tem a pretensão de baratear uma receita pois custa muito mais caro que açúcar de cana. Fiz uma pesquisa rápida e encontrei 5 kg de maltodextrina por R$ 84,50 e 5 kg de açúcar cristal por R$ 9,54. O que faz uma cerveja boa ou ruim é sua receita e a qualidade dos ingredientes e técnica utilizada, não simplesmente se tem ou não o milho.

E porque estou trazendo novamente o assunto à tona? Por que o hype das cervejas Juicy IPAs ou NEIPAs ou Hazy IPAs traz a necessidade de argumentarmos sobre o ingrediente. Cervejas são construções equilibradas, substâncias adicionadas com critério e finalidade. Faz alguns séculos que temos controle das matérias-primas, sabemos que hoje temos o comando dos resultados finais em cor, textura, aroma e sabor, tudo isso em uma orquestra sensorial regida pelos profissionais que desenham uma receita, mestres-cervejeiros.

André Kunrath é diretor de operações na StartUp Brewing, fábrica de cervejas no interior de São Paulo, e reforça que maltodextrina é “o nome da cadeia de carboidrato derivado do amido e pode ser oriundo de varias fontes”. Kunrath ainda conta que deve testar a maltodextrina de mandioca, uma opção ao uso da malto de milho. Em uma conversa sobre o tema para escrever o texto, foi ele quem me mandou a imagem da fórmula que tem no texto ali em cima, não basta ser cervejeiro, é preciso entender além dos rótulos.

Eu tenho trabalhado com a StartUp desde o ano passado e provei as mais de 40 Juicys IPAs que lançaram de marcas próprias e também fabricações ciganas de cervejarias conhecidas e respeitadas (tem texto AQUI). Posso dizer com tranquilidade que a qualidade das cervejas feitas são bastante superiores e o resultado final no copo é o que chancela toda essa minha argumentação. A gente vem falando sobre o assunto internamente a semanas e meses e fui provocada a escrever, enfim, o texto.

Nem todas as novas IPAs vão adicionar o milho como carboidrato, muitas vezes usa-se trigo, aveia ou malte de cevada em maior proporção e também usam técnicas diferentes na temperatura de mosturação, mas a maltodextrina é uma realidade para grande parte das receitas contemporâneas que buscam um determinado resultado final. Alguns benefícios são inegáveis, pois a cor final pode ser muito mais clara, sabores de lúpulo se mantém como principais e não agrega mais álcool.

Quem liga?

A primeira coisa que vem na minha cabeça quando surge o assunto é: qual a importância disso para o consumidor? Não dá para generalizar, mas sabemos que grande parte das pessoas que bebem cerveja não leem o rótulo e não estão preocupadas se tem milho, arroz, cevada ou qualquer outra coisa. Querem beber sua cerveja preferida e poder pagar por ela.

Cerveja é aquele produto que parece ter nascido pronto. A gente sabe que a cerveja não nasce em árvore, mas muita gente nem sequer sabe como o álcool faz para chegar “lá”. Nem mesmo o lúpulo, que está descrito no rótulo, ninguém sabe o que é, nem causa estranheza. Parece que a confiança está naquilo que é destacado no rótulo “puro malte” e só.

O que faz mal na cerveja em geral é o consumo em excesso 😉 aquela ressaca pode ser causada por outros motivos que não o milho, entende? Por isso falarmos sobre consumo consciente e questões culturais é também muito importante.

Se você for buscar nas discussões antigas do assunto (não recomendo, rs), vemos que grande parte das pessoas que reclamam do uso do milho na cerveja não fazem pelos motivos que talvez sejam os corretos. Estão apenas indignadas e digitando com ódio em questões alheias. São os haters da internet, algo ainda incompreensível e que existem também no meio cervejeiro e inclusive no mercado artesanal.

Foi em 2015 que o jornalista e cervejista Marcio Beck escreveu o artigo O mimimi do milho na cerveja – até quando? | Dois dedos de colarinho. Esse texto foi uma bomba, na época o jornal era aberto, hoje em dia apenas para assinantes. Mas o conteúdo reverberou e existem muitas citações feitas ao texto em diversos artigos de opinião, assim como este meu. E ainda existe muito a ser dito, estudado e pesquisado.

Gostaria que fosse uma questão simples e vou usar um exemplo super clássico de cerveja que tem milho na receita e não tem vergonha de dizer. Você já provou Rodenbach? A cultuada cerveja belga (uma das minhas preferidas no mundo) usa milho, e tá tudo bem. A questão é que a cerveja é muito boa e ninguém nunca se preocupou em ficar comentando “e o milho hein?”.

Muita gente já escreveu sobre milho na cerveja

Muitas perspectivas já foram colocadas aqui nessa terra de ninguém chamada internet. Eu separei (mais) alguns links que podem ser interessantes para quem ainda não se convenceu, para quem já está convencido ou para quem, assim como eu, gosta de olhar por diferentes ângulos.

Nos fóruns gringos também existem ótimas discussões para acompanhar. Dúvidas cervejeiras de adição, resultado e muita experiência caseira:

O do Beersmith

How much maltodextrin to use?

Do Beer Advocate

maltodextrin? | Community

Saúde!

Então depois desta longa explicação vai ficar com esse tico-tico no fubá ou vamos beber cerveja sem ser tão xarope 😉 ? Malto, malte e milho sem má compreensão, esse é o MM´s cervejeiro que queremos.

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