Dias atrás eu vi um post do chef Alex Atala com uma foto que me intrigou. De relance parecia um ovo, depois uma sobremesa, mas era algo que não era comum. Na legenda a explicação de um novo prato que está no menu degustação do restaurante D.O.M (Duas estrelas no Guia Michelin).
Alex Atala é atualmente o oitavo melhor chef do mundo pelo “The Best Chef Awards 2021” e muito famoso internacionalmente. Em sua postagem na rede social muitos chefs estavam interessados nesta inovação, o que seria a mandioca com mofo branco? Que sabor tem? Fiquei tão interessada e curiosa quanto todo mundo.
“A integração de estudos arqueológicos e etnobotânicos sugere que a dispersão da cultura da mandioca está ligada aos movimentos humanos pré-históricos ao longo dos rios amazônicos.”[i] Alessandro Alves-Pereira
A mandioca como uma iguaria parece um paradoxo. A raiz que tem muitos nomes no Brasil é um dos principais alimentos à mesa de todos os brasileiros. Vendida com casca, descascada, congelada e em tantos outros formatos que não inteira, mas em farinhas e afins, é um produto barato e que nos parece muito simples. A mandioca simplesmente cozida com água ou até frita para um petisco nunca imaginou que poderia ser uma iguaria em um dos restaurantes mais caros do país.
“Depois de meses de estudo, uma das criações mais atrevidas da equipe de cozinha do DOM foi a combinação de mandioca com mofo branco e mel ácido de abelha nativa brasileira.” Alex Atala em sua conta do Instagram
Em passagem a trabalho por São Paulo, eu escrevi para Gabriela Monteleone, Sommelière Executiva do D.O.M pois vi uma postagem que ela comentava sobre a harmonização de vinhos.
“Harmonizar é o processo criativo de um sommelier. Enquanto um cozinheiro compõe sabor através da escolha e arranjo de ingredientes e técnicas, nós, profissionais da bebida, compomos esse sabor através da harmonização.” Gabriela Monteleone
“Vamos nos falar?” mandei por mensagem para ela. A harmonização está sempre comigo m mente e com o evento do 5 atos que fizemos com cervejas estou aguada por escrever, ler e falar mais sobre o assunto. Por fim, marcamos de nos ver e eu acabei indo ao D.O.M na primeira hora da noite, logo que abre.
Chegando lá, inocente, achei que daria para provar o que eu imaginava ser uma sobremesa. Fui avisada que o menu é fechado, reservas antecipadas e um serviço por noite! Sim, quem quiser ter a experiência de um almoço ou jantar precisa previamente agendar sua mesa. O valor é de R$ 640,00 na experiência UNUM ou R$1.090,00 com as harmonizações (que super indico, se for uma possibilidade).
“Com os ingredientes mais frescos do dia, respeitando as restrições alimentares de cada um.” Está escrito no menu que foi lançado dia 22/02/2022 no aniversário de 22 anos do restaurante.
A noite não estava perdida, fui jantar e voltei apenas para conversar entre os serviços. Sentada no balcão aguardei com um ótimo papo sobre cultura e bebidas com a Taly Skid, head de bar da casa, que me serviu um coquetel de sua autoria, o Ancestral Indica. Um artigo só para falar deste papo e sabor em outro momento.
Ao que parece uma reserva não pôde ir e a sorte chegou com a Gabriela me dizendo que ia mandar algo novo. Sim, era A MANDIOCA. Então, após os planetas se alinharam eu recebi um jogo de talheres e um prato de cerâmica escuro com uma simples e preciosa mandioca ao centro. Tinha como se fosse uma pele, uma casca, um veludo bastante delicado. Junto chegou uma pequena panelinha com mel de Mandaçaia, uma espécie nativa de abelhas. Gabriela despejou aquele líquido amarelo claro por cima de parte do pedaço de mandioca.
Cortei ao meio, depois novamente na metade e coloquei na boca. Engraçado, a sensação inicial de estar comendo um pedaço de queijo, tipo um Brie ou um Camembert, mas ao morder por inteiro, é uma macia mandioca. O sabor se mistura, um leve amargor desta casca, com a presença da mandioca, quase doce, o amido, com uma nota amanteigada, mas sem uma coisa láctea, a textura firme, mas macia. O mel tem papel importante, traz doçura, acidez e ainda mais um toque de funk leve. Estava com a mente e paladar meio deslumbrados, aquele sentimento de êxtase, coisa nova, inexplicável.
Junto, veio a harmonização, a composição que a sommelière fez, trazendo a história para onde tudo começou, a conversa sobre as combinações de comida e bebida. Na taça:
Poiré Authentique Eric Bordelet
Região: Normandie Tipo: Espumante de pera leve Frutas: 100% Pêras
No site da importadora De La Croix:
“Perfumada, com deliciosas notas frutadas de pêra nos mais diversos estados: fresca, cozida, seca, flambada. Em boca é fresca e deixa um agradável final com leve açúcar residual. Interessante par gastronômico para pratos mais ousados com certo amargor.”
Alguns casamentos são inesperados. Nesta festa que aconteceu em minha boca, não conhecia nada que passeava por ali. Nem a mandioca, viva, inovadora, simples e tão cheia de técnicas e nem o Poiré brincalhão, carbonatado, fresco, frutado, equilibrado. Uma verdadeira festa para meus sentidos.
A técnica da mandioca, me explicou o cozinheiro de “toque blache” que veio ao salão olhar o serviço, Rafael Kamia, já tem ocorrido em outros lugares do mundo (não com mandioca) e citou o NOMA. Usando as mesmas enzimas que o queijo Brie, dão um banho na mandioca já cozida, que depois de alguns processos, dormem por alguns dias junto aos vinhos na adega. Ele me mostrou um vídeo do ano passado, em uma das diversas vezes que testaram e testaram o novo prato, que não é uma sobremesa, mas uma transição do menu.
No mundo da fermentação, ainda existe muito a ser criado, descoberto, bebido e comido.
E para finalizar aqui ainda com mandioca, Alex Atala lançou a pouco tempo um livro totalmente dedicado a essa raiz. AQUI
Saiba mais sobre o assunto:
- How Noma Uses Fermentation
- Rene Redzepi: Fermentation could one day turn Noma into a vegetarian restaurant – The Washington Post
- Review Article Applying food enzymes in the kitchen!
Funcionamento do D.O.M
Almoço e Jantar
Segunda a Sexta
12h às 15h
19h às 21h
Sábado
19h às 21h
Endereço: Rua Barão de Capanema, 549 – Jardins São Paulo . SP – Brasil
[i] O artigo Patterns of nuclear and chloroplast genetic diversity and structure of manioc along major Brazilian Amazonian rivers (doi:10.1093/aob/mcx190), de Alessandro Alves-Pereira, Charles R. Clement, Doriane Picanço-Rodrigues, Elizabeth A. Veasey, Gabriel Dequigiovanni, Santiago L.F. Ramos, José B. Pinheiro e Maria I. Zucchi, está publicado em https://academic.oup.com/aob/article-abstract/121/4/625/4791086.