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Vida de Zoólogo

Originalmente publicado na Sociedade Brasileira de Zoologia Ano XL setembro/outubro 2018 link AQUI 

Comecei minha vida de bióloga por acaso. Precisava decidir para qual curso universitário deveria me inscrever no vestibular e, por exclusão, optei por Biologia. Minha mãe ficou muito feliz porque achou, como eu na época, que seguiria a carreira na Botânica, área pela qual ela tinha apreço. Já no início do Curso, percebi que me interessava mais pelos animais e fui procurando realizar minha formação através de disciplinas da área. Acho que os professores da Zoologia da USP, São Paulo, onde fiz minha graduação e pós-graduação, contribuíram muito para isso. Adorava as aulas de Invertebrados com o Prof. Gilberto Righi, grande especialista nos anelídeos neotropicais; a Profa. Eudóxia Fröelich sabia despertar nossa curiosidade sobre os invertebrados nas aulas práticas e a profa. Tagea Bjornberg sempre foi um ser à parte por sua inabalável disposição em ministrar aula, mesmo que todos os alunos estivem suplicando que terminasse a aula, antes que o último ônibus deixasse a Cidade Universitária às 23:30h!

No último ano, cursei duas disciplinas com a Profa. Liliana Forneris, e ela se tornou minha orientadora no Trabalho de Conclusão de Curso que abordou os artrópodes de solo da Ilha do Cardoso. Nessa época, estava muito interessada pelos ácaros de solo e fascinada pela diversidade encontrada em um único local. Através da ajuda da Profa. Liliana, consegui que o Prof. Baggio, do ICB/USP, especialista em ácaros, me orientasse na identificação e preparação dos exemplares para estudo. Isso envolvia a preparação de lâminas, em um processo bastante minucioso e demorado. Muito prática, ao final do período com o prof. Baggio, a profa. Liliana o inqueriu se ao estudar esses organismos eu conseguiria um emprego! Como a resposta foi bastante incerta, ela me orientou a escolher outro grupo. Em uma de suas disciplinas optativas – Distribuição dos animais – desenvolvi minhas pesquisas e relatório final sobre o gênero Thraupis, o nosso conhecido sanhaço. Desse modo, conheci o Dr. Luiz Antonio Marcondes Machado, da UNICAMP, ornitólogo que me orientou nesse tópico e que aceitou me orientar no Mestrado em Ecologia da UNICAMP, estudando o comportamento alimentar dos sanhaços.  E assim, fui me tornando zoóloga.

A prova para ingresso na Pós-graduação da UNICAMP era bastante competitiva e, para me preparar para ela, comecei a estudar com um dos meus colegas de Faculdade. Assim começou também outra grande parceria que se estende até hoje – logo começamos a namorar, Dalton (o hoje bastante conhecido Prof. Dr. Dalton de Souza Amorim, na época um jovem sonhador) e eu, embalados pela Ecologia.

Consegui entrar na Ecologia da UNICAMP, em quarto lugar, o que me ajudou a conseguir uma bolsa do CNPq. Como meu orientador ainda não possuísse o título de Doutor, fui encaminhada para o ornitólogo daquela instituição, o Dr. Jacques Villard, que trabalhava com Bioacústica de aves. Enquanto estive ligada ao Programa de Pós-graduação em Ecologia, fui orientada pelos dois, o que ampliou minha perspectiva sobre as perguntas possíveis em Ornitologia. Minha ideia, na época, era conectar dados de comportamento alimentar com filogenia, algo não desenvolvido até então e uma ideia que nem eu mesma sabia como abordar, por falta das ferramentas teóricas e práticas.

Como a vida acadêmica/profissional, principalmente de uma mulher, nunca está separada da vida pessoal, esta última interpôs-se na primeira e eu abandonei a Unicamp. Na época, morava em São Paulo, estava casada e com duas filhas bem pequenas. A necessidade de cumprir créditos em aulas de campo, além das viagens de campo para obtenção de dados para minha Dissertação, ficaram inviabilizadas pela minha condição de mãe, com pouco apoio familiar disponível para isso. Minha solução foi buscar a continuidade da formação no Museu de Zoologia, onde Dalton estava desenvolvendo seu Doutorado com o Prof. Nelson Papavero. O prof. Nelson, com seu coração generoso, me acolheu, desde que eu mudasse o foco dos meus estudos para Diptera. E foi assim que me tornei dipterista! O acaso levou a uma das mudanças mais positivas em minha carreira e, sem desdenhar das aves, descobri que os insetos são muito mais interessantes e com vários problemas biológicos a serem solucionados.

Com isso, completei Mestrado e Doutorado no Museu de Zoologia da USP, São Paulo. Primeiro, sob orientação formal do Dr. Nelson Bernardi, que possuía vaga disponível para me orientar no Mestrado e, continuando no Doutorado, com o Prof. Nelson Papavero. Nesses projetos, iniciei meus estudos com Sepsidae (no Mestrado) e Lauxaniidae (no Doutorado), ambas famílias de Diptera acaliptrados.

Esse período foi determinante em minha formação profissional e forjou a Zoóloga que sou hoje. O tempo de contato com os pesquisadores da instituição aprofundou minha admiração pelos Museus, esclareceu sua importância e me tornou uma ferrenha defensora deles e de seus acervos, incluindo a Biblioteca.

Portugal, 2012

Ainda durante o Doutoramento, consegui entrar em uma vaga na UNESP, no câmpus de Assis. Nesse período, já estava separada do Dalton e buscava meu caminho. A possibilidade de trabalhar em um local no interior de São Paulo e ajudar a desenvolver um curso de Ciências Biológicas quase a partir do zero, foram determinantes para que eu me mudasse para aquela cidade tão distante da capital (5 horas de ônibus) e pequena (cerca de 80 mil habitantes).

Essa decisão foi também vital para mim. Ao longo dos 18 anos em que permaneci lá, pude me envolver com os três pilares da atuação da universidade – ensino, pesquisa e extensão. Enfrentei o desafio de trabalhar em um local sem infraestrutura, sem bibliografia da minha área, sem internet na maior parte desse tempo, sem coleção e sem colegas da área com quem trocar ideias e incentivar/ser incentivada em momentos difíceis. Precisei aprender a conversar com colegas de áreas muito diferentes porque nosso campus era majoritariamente da área de Humanas, com cursos tradicionais como Letras, História e Psicologia; nessas conversas precisava “defender” o gasto tido como alto para nossas atividades, a imprescindibilidade das viagens de campo com os alunos e a natureza das nossas pesquisas. Descobri minha vertente extensionista e pude realizar muitos projetos na área da Biodiversidade, atuando em parceria com professores e educadores.

Em 2003 me credenciei como orientadora e responsável por disciplina junto ao Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal do IBILCE/UNESP, S. José do Rio Preto. Considero que a vinculação a um programa de Pós-graduação é vital para a carreira profissional de um zoólogo. Ela permite que participemos da formação de outros profissionais, estabeleçamos colaboração científica com pesquisadores de áreas afins, sejamos estimulados a submeter novos projetos para agências de fomento, desenvolver projetos colaborativos, a publicar com nossos alunos e/ou sozinhos—enfim, atuemos com nossa capacidade máxima em nossa área de atuação.

Muralha da China, 2014

No ano de 2008, fiz uma mudança muito importante e me transferi para o campus da UNESP de Jaboticabal. Nesse período, minha vida pessoal havia mudado bastante – havia retomado meu casamento com o Dalton, nossas filhas e um neto estavam em Ribeirão Preto. Nessa mudança, outra virada de perspectiva – desta vez, trabalhava em um campus de Ciências Agrárias e meus colegas precisavam entender as peculiaridades da pesquisa básica em Biodiversidade, algo como “por que você estuda esses bichinhos sem valor para os seres humanos?” Novas perguntas e novas respostas.

Um ponto muito positivo é que a proximidade física possibilitou uma interação maior com o laboratório do Prof. Dalton – estou usando esse título porque então ele passou a ser mais ativo como meu colaborador científico –, e com a USP/RP, quando passei a orientadora pontual no Programa de Pós-Graduação em Entomologia da FFCLRP.

Chile, 2018

O resultado de minha atuação como orientadora de Pós-Graduação não é expressivo numericamente – foram 5 Dissertações de Mestrado e um Doutorado parcial –mas foram decisivos para essas pessoas, no sentido do aprimoramento profissional, e, no meu caso, me levaram a refletir sobre o papel do orientador e sua importância no desenvolvimento da Ciência brasileira. Também resultaram em vários trabalhos publicados em parceria.

Na minha trajetória existem dois aspectos que valorizei e que considero muito importantes para os jovens zoólogos: as viagens de campo e os congressos da nossa área de atuação. Com relação às viagens, fiz muitas coletas, conheci um número menor de biomas do que gostaria, mas isso me ajudou a conhecer melhor o local onde vivem os insetos que estudo. Para um sistemata, essas viagens podem ser também para visitar coleções em museus; no meu caso, sempre foram fundamentais porque temos acesso a exemplares de locais que não conseguimos acessar pessoalmente, estudamos material tipo e podemos estabelecer parcerias com pesquisadores dessas instituições. Minha primeira viagem internacional foi em 1994, para o Canadá; visitei a coleção nacional de insetos, em Ottawa, mantive contato com o grande especialista na família de dípteros que estudo, o Dr. Guy Shewell e fui a um congresso de Diptera. Ao longo dos anos pude visitar muitos museus e suas coleções e, desse modo, ampliar minha compreensão dos Lauxaniidae e dos Sepsidae.

Atualmente é dada grande ênfase ao trabalho em colaboração, principalmente se estabelecida com pesquisadores de outros países. Na minha carreira pude estabelecer essas alianças com pesquisadores da Hungria, EUA, Bélgica e Singapura. Este é um outro aspecto que saliento como fundamental para uma carreira bem-sucedida para os zoólogos atuais.

Singapura, 2019

 

O aspecto de comparecer a congressos também é fundamental para os novos zoólogos. No Brasil, o Congresso de Zoologia é tradicional. Tenho um grande apreço por ele porque consigo encontrar meus colegas, desenvolvendo o famoso “networking”, acesso novos conhecimentos a serem utilizados em aulas, tenho ideias para novos projetos. Nos últimos anos, nele acontece o Simpósio de Diptera que tem sido fundamental para estabelecermos prioridades para a área no Brasil, e serviu como ponto de ignição para o projeto SISBIOTA Diptera, do CNPq e FAPESP, do qual fiz parte. Para a área de Diptera, o congresso internacional segue a mesma linha de raciocínio, sendo mais importante ainda. Nesse sentido, através desses contatos, também participei de projetos internacionais de investigação da diversidade de Diptera em áreas como Costa Rica (Zurchí), Guiana Francesa (Mitaraka) e, mais recentemente, Singapura.

No ano passado eu me aposentei da UNESP. Sou muito grata à essa instituição por tudo que me proporcionou, pela possibilidade ampla de atuação como bióloga. Atualmente, pleiteio uma associação com a USP/RP para continuar minhas pesquisas com os dípteros que despertaram minha curiosidade científica tempos atrás. Durante minha carreira profissional, descrevi 15 novos gêneros e 48 novas espécies de dípteros, sozinha ou em co-autoria.

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