Que tipo de sommelier de cerveja você é?

Que tipo de sommelier de cerveja você é?

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Olhando o líquido no detalhe contra a luz. Foto: CanvaOlhando o líquido no detalhe contra a luz. Foto: Canva

Estamos comemorando, aqui no Brasil, 10 anos de educação em sommelieria na cerveja. Foi no ano de 2010 que chegaram os cursos de formação e isso foi parte da onda que já subia mercado cervejeiro, suas cervejas e seus diversos estilos e histórias sedutoras.

Não temos os números exatos de quantas pessoas se formaram desde então. As escolas são um pouco reticentes em expor os dados, mas a conta é alta. Já são milhares de certificados emitidos e muita cultura cervejeira falada e bebida no país.

As conversas sobre bebidas, álcool, embriaguez e ritual são longas. Quando olhamos para o assunto, podemos nos deparar com muitos olhares – religião, medicina, culturas diversas, lugares do planeta e, claro, o olhar econômico.

A ingestão de bebidas alcoólicas e seus efeitos vão muito além da função do sommelier, mas o profissional é parte do processo e é preciso entender quais as responsabilidades que tem ao se intitular neste papel. Parece até coisa nova, uma profissão contemporânea, mas não é. Faz milênios que existe o cargo de quem cuida das bebidas alcóolicas. O serviço da cerveja, assim como o do vinho, nasce quase que junto com a bebida em si. É a ordem das coisas, tem quem faz e tem quem serve. E tem quem bebe, ou um pouco de tudo, de tudo um pouco.

Baseado nesse pensamento, o sommelier é parte de um organismo vivo que é a cerveja e, por isso, se transforma a cada período, de maneira a acompanhar a evolução de qualidade que a cerveja vem passando a milênios.

Foto: West Trends #2. Ux Brew. Bia Amorim

O texto é longo, pegou sua cerveja?

Atualmente, o sommelier desempenha muitos papéis dentro do setor de Alimentos & Bebidas e há muitas formas de se buscar conhecimento sobre a profissão e suas funções em cursos, livros, experiências e estudos. A maior parte do que conhecemos é importada dos países onde a cerveja é parte da cultura do povo, onde o desenvolvimento da história caminhou junto com pesquisa, ciência e inovação do fermentado de grãos.

Ora, no Brasil também estamos caminhando e desenvolvendo nossa própria cultura, nossas metodologias, conceitos, formas de se apresentar, gírias próprias, experiências, críticas e debates. Isso seria parte do que chamamos de “escola cervejeira”? Existe algo que podemos ensinar? Já viu uma pessoa de Minas Gerais falando sobre cerveja? Não tem igual no mundo! Haja chão e hora copo, mas tem um caminho a trilhar.

Bebemos hoje a melhor cerveja já feita! Bebemos melhor, inclusive porque aprendemos que, depois da cerveja pronta, ela tem um caminho no serviço que pode, pela excelência, causar uma experiência muito mais potente. Ter conhecimento, saber sobre o produto, entender qual seu valor dentro daquele ambiente específico, qual a linguagem certa usar, pode ser um dos maiores conhecimentos deste profissional. Ter ciência, consciência e compartilhar de um consumo muito mais inteligente é parte da sua obrigação.

Sommelier é quem serve?

Já pensei bastante nisso, estou sempre caminhando com essa reflexão. Este cargo de sommelieria existe apenas em quem se dedica à sala? Ou, depois de formados, mesmo que sem vivenciar o ofício, apenas pelo diploma na parede – “sou sommelier”?

Não existe classificação oficial e no caso do profissional de cerveja, não existe sequer legislação, ou seja, uma regulamentação válida. Temos uma lei para os sommeliers de vinho (encontrei via site da Alexandra Corvo, aqui), que entrou em vigor no ano de 2011. Fala muito mais sobre as atividades prestadas:

LEI Nº 12.467, DE 26 DE AGOSTO DE 2011.

Art. 1o  Considera-se sommelier, para efeitos desta Lei, aquele que executa o serviço especializado de vinhos em empresas de eventos gastronômicos, hotelaria, restaurantes, supermercados e enotecas e em comissariaria de companhias aéreas e marítimas.

Parágrafo único.  (VETADO).

Art. 2o  (VETADO).

Art. 3o  São atividades específicas do sommelier:

I – participar no planejamento e na organização do serviço de vinhos nos estabelecimentos referidos no art. 1o desta Lei;

II – assegurar a gestão do aprovisionamento e armazenagem dos produtos relacionados ao serviço de vinhos;

III – preparar e executar o serviço de vinhos;

IV – atender e resolver reclamações de clientes, aconselhando e informando sobre as características do produto;

V – ensinar em cursos básicos e avançados de profissionais sommelier.

Art. 4o  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

O Art. 2o  (VETADO) falava sobre a obrigatoriedade de se ter certificado para exercer a função, ou então, 3 anos de experiência. Mas foi vetado porque “A Constituição Federal, em seu art. 5o, inciso XIII, assegura o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, cabendo a imposição de restrições apenas quando houver a possibilidade de ocorrer algum dano à sociedade com a necessidade de proteção ao interesse público. ”

Ou seja, você também pode atuar como sommelier, sem certificado, mas precisa saber quais são as funções e atividades específicas do trabalho. Na área de cervejas, a Abracerva tem agora um núcleo de sommeliers e deve, ao longo dos trabalhos, desenhar projetos e entender como ajudar a profissão a se tornar regulamentada.

Eu já hesitei nessa questão, fui mais dura e, até hoje, acredito que um sommelier de cerveja precisa saber carregar uma bandeja e fazer um perfeito serviço. Mas isso porque já trabalhei como garçonete, tive diversos cargos no salão de um bar e restaurante e entendo que é necessário olhar para o serviço, de maneira mais ampla e verdadeira. Se a gente começa a abrir mão de tudo, o que sobra para quem realmente coloca a cerveja no copo do consumidor?

Diversidade de vinhos. Foto Canva

Lá Fora no país da NEIPA

Nos Estados Unidos, não se usa tanto quando aqui o termo sommelier. Existe o diploma Cicerone, que tem uma postura bastante interessante sobre o tema. No site deles, peguei esse trechinho, que resume bem, em poucas palavras:

Qualquer pessoa pode se considerar um especialista em cerveja. Mas quando os consumidores querem uma boa cerveja, eles precisam da ajuda de um atendente que realmente conhece os sabores, estilos e serviço da cerveja”.

No Brasil, temos especialistas com o diploma de Cicerone, quase sempre como uma ferramenta de potencializar seus conhecimentos e não um carimbo. Hoje em dia, no atual valor da moeda norte americana, os valores para o curso e a prova são praticamente impossíveis. O site já existe em português e você pode fazer uma mini provinha. Aqui, Beatriz Ruiz foi a primeira a passar na prova, que fez no exterior, em maio de 2018.

Sommelier é quem fala?

Olhando pela perspectiva das redes sociais e a quantidade de perfis que envolvem “beer”, “cerveja”, “hops”, “ipa” e outras nomenclaturas cervejeiras nos @´s é grande o número de pessoas que estão fazendo da paixão um veículo para disseminar a cultura cervejeira, de acordo com os rótulos que bebem. Então, algumas pessoas com o diploma de sommelier são muito mais comunicadores, “relações públicas da cerveja”, influenciadores digitais, do que efetivamente do serviço.

Mas com um certificado em mãos e curso feito, por que não usar o termo? Pois se você está falando sobre cervejas em um evento, dando uma palestra sobre cultura cervejeira ou sugerindo harmonizações de comida e bebida, é também uma forma de divulgar e melhorar a compreensão que as pessoas têm sobre o que é cerveja, além de um líquido apenas amarelo e brilhante. Então, acredito que nesta época em que vivemos, o sommelier também é quem usa das ferramentas atuais para disseminar esse conhecimento. Mas vale a reflexão: Você sabe mesmo do que está falando?

Sommelier é quem escreve?

Servir e falar sobre a cerveja carrega o peso de muitos anos de história, contextos, condutas, sociedades, guerras e paradigmas. Luís da Câmara Cascudo, em seu livro História da Alimentação, diz “De todos os vícios humanos, é o que se honra com a mais extensa e erudita bibliografia, registrando sinônimos e andanças semânticas ”, fazendo referência às bebidas alcoólicas.

Escrever é mais uma forma de comunicar. O consumo de vinho e cerveja é parte importante da nossa biografia; apenas quando conseguimos entender de onde viemos e para onde vamos, a relação com a bebida se torna realmente potente. Estudar é preciso e contar as histórias atuais também. Um sommelier pode e deve escrever sobre o que vive, o que bebe, o que come. Assim, deixa para o futuro, um passado onde o presente conta sobre nós e nossa evolução.

Sommelier é quem bebe?

Está aqui o grande “core” do negócio. Muitos estão na “sommelieria” apenas para vivenciar esta etapa: a de provar, degustar, apreciar. Sem vínculo empregatício, sem carteira, sem CNPJ.

No livro Bebida, abstinência e temperança, o historiador Henrique Carneiro vai trazer a história inebriante da embriaguez. Ele discute, entre outras questões, sobre três paradigmas (e eu acredito que o sommelier vivencie os três): abstinência, excesso e temperança.

Se você apenas bebe, sem pensar nas questões acima, sem servir, sem compartilhar conhecimento e angariar novos consumidores para este universo, ainda tão pequeno da cerveja artesanal, talvez precise rever seu consumo, seu status. Sommelier é quem ensina a beber, engrandece o prazer das pessoas que consomem cerveja.

Status sommelier?

É uma grande verdade que, ao chegar em um ambiente social e sermos apresentados como “fulane é sommelier de cerveja”, brilham os olhos daqueles que também amam a bebida. Sempre existe um certo frisson, ainda mais, depois de 10 anos, a mídia noticiando sobre o setor artesanal, e tantas cervejarias nascendo, altos números, cervejas caras e todo o fetichismo criado.

Por status, fazemos muitas coisas, como ostentar garrafas caras – e não pense que o Instagram foi quem começou essa moda. Séculos atrás, uma garrafa cara em cima de uma mesa dizia aos outros quanto “poder” aqueles copos carregavam. Ou até mesmo fotogramos e postamos uma cerveja que não agrada nosso paladar, mas está na moda.

Robert Parker é um conhecido, ou o mais popular, sommelier de vinhos do mundo. Mas é extremamente conhecido por ser uma pessoa arrogante e seu gosto pessoal já derrubou algumas marcas. Quem quer ser esse tipo de pessoa?

O que diriam as deusas e deuses da cerveja, olhando os instagrammers que buscam apenas o Olimpo inadvertidamente, desconhecendo os caminhos mortais. Alguns hedonismos são dispensáveis.

“Não se trata de elogiar o paladar como experiência excepcional e rara, nem de concebê-lo como instrumento de poder, para reclamar uma maior capacidade individual ou para a exibição narcisista de habilidades ”, diz Nicola Perullo sobre a experiência de saborear comida, mas não no sentido “exclusivista”.

Hospitalidade e ética, o sommelier socrático

Existem diversas formas de mostrar quão valiosa é uma experiência sensorial com a cerveja. Mas também é necessário entender o tempo e o lugar da jornada de cada pessoa, olhando para seus gostos pessoais, possibilidades financeiras, entre outros detalhes.

A melhor cerveja é aquela que você está bebendo e não precisa ser sommelier para saber disso. Talvez a hospitalidade também tenha muito a ensinar para a cerveja.

No campo da ética, um bom exemplo seria Sócrates, que desponta como o modelo do bom bebedor: bebe sem se alterar, sem perder o autodomínio e a lucidez, e permanece sempre acordado. Foi considerado justo e sábio e é lembrado por isso até hoje, milênios depois da sua morte. É dele a frase “só sei que nada sei” e, como bons filósofos e bebedores, estamos sempre pensando na complexidade das coisas. Ele foi um grande professor, tendo Platão como aluno.

A cerveja também é intelectual e teórica. É político seu consumo, como tudo.

Cervejista, zitólogo, sommelier ou apenas expert?

Queremos ser especialistas em tudo. Edu Passareli escreveu um curto e divertido texto sobre isso, ainda em 2012, para o Uol, com título parecido com este artigo “Tipos de sommelier”.

Somos sommelier do quê? Talvez os cursos tenham formado ótimos experts, querides cervejistas e excelentes zitólogos. Esquecemos que existem outras formas de dar nome aos conhecimentos.

E se você for apenas uma pessoa que conhece muito, muito mesmo, de cerveja, tudo bem pra você não ser sommelier?

Um paladar refinado demais, em muitos casos, pode constituir um grave inconveniente, tanto para quem o tem, quanto para seus amigos; mas, o gosto requintado do espírito e da beleza sempre deve ser considerado um atributo desejável, pois é fonte de todas as alegrias mais primorosas e mais inocentes de que é capaz a natureza humana” (HUME apud O gosto como experiência, Nicola Perullo, p. 31.

Eu vejo a palavra cervejista como muito mais sofisticada, mas estamos prontos para esta conversa?

Quanto custa uma formação?

Quanto ganha uma pessoa que trabalha nos salões e bares do país? Depende de alguns fatores, mas, segundo pesquisa atual em site de salários, um garçom, em São Paulo, trabalhando 43 horas semanais, ganha R$ 1.313,26 por mês.

A média de investimento em um curso de sommelier (com cerca de 90 horas total) é de R$ 3.700,00. A conta não fecha para todo mundo, por mais que seja um curso onde se prova quase uma centena de cervejas do mundo inteiro.

Não é dizer que quem busca a profissão ou apreciadores não devam se especializar, procurar se formar e investir no conhecimento. Vale muito, mas é necessário entender que um sommelier de cerveja pode não ganhar o suficiente para beber as cervejas da moda, as hypes, que custam, em média, R$35,00 uma lata. Vai sempre beber menos, porém beber melhor.

No site Vagas, a média salarial de um sommelier é de R$ 2.500,00, bastante próximo a realidade de bares, restaurantes e empórios. Dá para ganhar um pouco mais com 10% e bonificações, fato é que continua sendo um salário de profissionais de serviço em A&B.

Para ter um salário melhor, é preciso fazer mais investimento. Precisa pensar em carreira.

O perfil de profissional empreendedorismo é real. Podemos ser autônomos. Mas dá tanto trabalho quanto o outro trabalho. São caminhos diferentes.

Carreira

O mercado cervejeiro está em crescimento e precisa de muitos braços e paladares para conseguir crescer com qualidade e excelência. E não só de serviço pode viver um sommelier. Hoje importadoras e distribuidoras buscam profissionais com especialização. O setor de marketing das fábricas precisa de pessoas que saibam do que estão falando. O comercial tem muito a ganhar quando se tem formação e informação. Os próprios cervejeiros, práticos, técnicos, químicos e pessoal de chão de fábrica, com um curso de sommelieria, trabalha melhor, entendendo de maneira geral a cultura cervejeira.

Alguém que tenha todo o conhecimento passado em um curso pode ter muitos caminhos e seguir por diferentes jornadas e até mudar o nome do cargo que vivência, se desvencilhando do termo francês e sabendo que aquela especialização foi um degrau importante.

Expectativa x realidade

Esse texto poderia ser uma provocação. Mas não é. É um desejo de acolher tantos olhares e novos tempos. Existe tanto a descobrir e falar, explicar e resolver. Chilli na IPA dos outros é refresco.

Ser ou estar. Sensorial ou serviço.

São muitas conexões e uma história de pelo menos 8.000 anos, somadas às histórias que cada um de nós viveu em seu pequeno universo. Construímos nosso paladar e essa é a verdadeira experiência, porque nos conecta às pessoas, suas sabedorias e nossa finitude.

Proponho um brinde às mudanças necessárias, às cervejas servidas, a quem fez, quem colheu, carregou, brassou, envasou, etiquetou, encaixotou, vendeu, comprou, revendeu, digitou, fotografou, empacotou. A quem chegou até o fim de uma longa reflexão, que a cerveja embalou.

Pão e cerveja a todos nós, independente de qual etapa você está.

O pão eu já comecei a fazer, mas não me intitulei padeira. Ainda falta o curso 😉

saúde!

Outras coisas que li AQUI AQUI AQUI  AQUI  AQUI durante as muitas semanas que passei escrevendo e apagando e buscando palavras para esse texto.

Outras vezes que eu escrevi sobre sommelieria

 

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