Você é chato pra comer?

Você é chato pra comer?

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Vera Lúcia Micheli Costa de Castilho, minha mãe, tem 61 anos e nunca comeu um hambúrguer, nem uma pizza, nem o frango assado de domingo, nem a maioria das delícias que te fariam salivar em cima desse texto. Ela só come coisas brancas. Sim. Macarrão sem molho, batata frita, clara de ovo, repolho branco, sorvete de limão ou nata, arroz sem tempero a não ser sal, que é branco.

A história que sei é que quando ela tinha dois anos de idade, teve uma grave infecção intestinal que a fazia ficar semanas sem conseguir ir ao banheiro. O medo de comer veio, basicamente, com o medo da infecção piorar. E o apetite da dona Vera foi ficando cada vez mais esquisito a partir de então. Mesmo depois de inúmeros problemas de saúde como osteoporose, hipertensão, aneurisma e enxaquecas fulminantes, ela não acredita que a alimentação seja um problema. “É difícil para as pessoas entenderem, mas é algo além do não gostar. Sinto nojo, não posso nem imaginar essas coisas na boca”.

Apesar da repulsa à maioria das comidas, minha mãe é cozinheira de mão cheia, porém, sequer prova para saber se o feijão está bom de sal. “Sei que está bom pela cor”.

SALVE A LASANHA CONGELADA

O estilo de vida da jornalista Marcela Falsarella já é recorrente entre os papos dos amigos. “Dizem que eu sou massiânica”. Ela come lasanha congelada todo santo dia e, curiosamente, assim como no caso da minha mãe, Marcela só ingere alimentos em uma paleta de cores específica: branco e vermelho, o que inclui batatas, tomates, massas, milho, pão, pizza e, raramente, carne branca e doces açucarados. Além da repulsa alimentar onde o grande campeão do asco é o feijão, Marcela também se incomoda com o que os outros estão comendo. “Detesto feijão no meu prato ou no dos outros. Pessoas que comem banana frita com a comida, peço a gentileza que não sentem ao meu lado. Me embrulha o estômago e perco o apetite instantaneamente”.

Ser chata para comer já rendeu muitos momentos constrangedores à jornalista e um deles foi quando teve de jantar com a família de um amigo. “Quando sentei à mesa, havia arroz, feijão, carne vermelha, salada de alface e legumes refogados. Tentei comer um pouco de arroz para não fazer desfeita, mas só de colocar o garfo na boca caíam lágrimas dos meus olhos e a ânsia já vinha. Foi uma das situações mais embaraçosas
da minha vida”.

A respeito da saúde, Marcela parece não dar grande importância, já que não faz nenhum tipo de exame desde os sete anos e nunca passou por nenhum médico ou psicólogo para melhorar e compreender o porquê dos seus hábitos alimentares. “Eu vejo a alimentação mais como uma questão cultural do que nutricional. No
Brasil, o arroz com feijão, unidos à carne, ovo e salada, é considerado o prato perfeito, mas na China, na Rússia, na Indonésia são outros”, argumenta. “Eu estou adaptada à minha alimentação e não vou mudar”.

Marsela Falsarella, vive de lasanha congelada. “Alimentação é uma questão mais cultural do que nutricional”. 

UM DEMÔNIO CHAMADO CHUCHU

O caso que mais me chamou a atenção foi o da bancária L.F, 35 anos, que pediu para não ser identificada. Ela apresenta um quadro traumático quando o assunto são vegetais. Cebola, só se não aparecer no prato. Tomate, só batido em molho. Coisas cremosas como polenta ou purê de batata arrepiam o corpo todo dela. L. tenta se lembrar de como tudo isso começou e chega na infância, quando os avós deixavam-na comer só o que quisesse.

O caso mais curioso foi quando tentou encarar seu maior inimigo em um almoço de família. “Coloquei um
quadradinho de chuchu cozido na boca e aquilo ficou ali, sem eu conseguir mastigar, engolir, cuspir. Comecei a
Um demônio chamado chuchu chorar e hiperventilar, meu namorado falava para eu engolir. Eu não consegui. Cuspi na mesa e desmaiei. Acabei com o almoço de domingo, me senti muito mal e foi difícil parar de chorar”,
lembra.

A bancária explica que sente pânico só de pensar em comer “essas coisas”. Como minha mãe, ela tenta explicar. “É algo maior do que um simples ‘não gosto’. Tenho nojo, medo do aspecto, os vegetais mais moles, molhados ou gelados, eu não consigo nem pegar. Numa demonstração de babaquice absurda, meu ex-namorado corria atrás de mim com um pé de alface pra me fazer chorar, porque eu não consigo
nem relar num alface”.

Atualmente, L. faz tratamento psicológico e psiquiátrico e também começou a investigar a causa de todo
esse pânico com uma nutricionista comportamental. O buraco, no entanto, é mais embaixo. A bancária também sofre com compulsão alimentar, anemia, já teve bulimia e problemas de autoestima relacionados ao peso, tudo associado a uma imunidade baixa que a deixa doente constantemente. Por ora, tenta buscar o mínimo de equilíbrio tomando complementos vitamínicos.

XÔ, FLANGO!

O advogado Luiz Edmundo Janini não pode ver nenhuma comida relacionada a aves. Milho, ovos, omelete,  bolo de milho e (pasmem) coxinha são verdadeiros pesadelos. Do franguinho assado no domingo, não chega nem perto. “Hoje isso não me incomoda mais. Eu evito comentar, assim não preciso me justificar quando alguém me fala que sou fresco pra comer. Se me oferecem algo de frango, apenas digo: não, obrigado”.

De acordo com a memória de Luiz, tudo começou na infância, quando uma tia tentou enfiar um pé de frango cru na boca da pobre criança que, apavorada, saiu correndo pra escapar da agressão gastronômica. Nojo e repulsa são os sentimentos que aparecem quando vê algo feito com frango.

A esposa do Luiz, a publicitária Luciana Stábile, diz que tenta ajudar. “Uma vez ele me pediu pra comprar a melhor coxinha da cidade porque queria superar. Deu uma mordida e não conseguiu mais”.

Durante a nossa conversa, o assunto fazia com que Luiz começasse, instintivamente, a se retrair contra a
parede, num gesto de autoproteção. O papo desconfortável parecia remeter cada vez mais ao dia do pé de frango cru.

Luiz Janini não pode ver frango pela frente. “Hoje, só digo não, obrigado”.

ONDE TUDO COMEÇA

Caio é um menino serelepe que, no auge dos seus cinco anos, deixa a mãe, a secretária, Gislene de Oliveira,
de cabelo em pé. Isso porque hoje, sua alimentação é baseada em pastel e pizza de calabresa de uma mesma
pizzaria. Às vezes, ele pede um bife bem passado no jantar. Na escola, passa o dia com pão e leite na barriga.

Gislene conta que até um ano e meio, Caio tinha uma alimentação normal e comia de tudo em forma de
papinha. Depois de uma estomatite, seu apetite ficou completamente desequilibrado. “Ele simplesmente
não se interessa por comida. Monto o prato, sento com ele à mesa, faço todo o ritual. Ele se recusa a comer”.
Em uma tentativa de compreender o que há com o filho, a mãe já passou por psicólogo, nutricionista,
endocrinologista e sete pediatras.

“Todos dizem que é apenas uma fase”, conta. Segundo Gislene, ser “chato pra comer” vem de família, já que o pai de Caio, Matheus, também tem suas próprias regras alimentares. “Ele só come o arroz feito por ele mesmo, vai entender”. A hora do almoço na casa da família Oliveira é uma cena gastronomicamente tragicômica.

No mesmo caminho, segue a pequena Sophia, de seis anos, filha da jornalista Gabriela Yamada. Com
o nascimento da filha, Gabriela pediu demissão do emprego e passou a se dedicar integralmente à maternidade. Voltou ao mercado quando Sophia completou dois anos e foi aí que o martírio alimentar começou.

“Ela rejeitava tudo, só leite que tinha alguma chance. Aí fui criativa, batia açaí com várias frutas, fazia vitamina
de morango e dava superpoderes ao ‘suco rosa’. Se tivesse banana, o cheiro a fazia vomitar”, conta. Atualmente, pão, bolacha, batata frita e nuggets compõem o cardápio básico da Sophia. Se não tiver um
desses itens, ela se recusa a comer.

“Ninguém sabe o que passo todos os dias para fazer ela comer minimamente bem. Ela não está doente, não está fraca. Então, quando alguém comenta algo, fico quieta, cansei de entrar em atritos com família e amigos, é complicado”, desabafa Gabriela.

Todos os médicos que atenderam Sophia, segundo a mãe, disseram que também é só uma fase e que
deve passar logo. Gabriela segue esperando e se esforçando para fazer a pequena comer.

É GRAVE, DOUTORA?

A psiquiatra Tatiana Rezende, coordenadora do GRATA – Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, está de acordo com as pesquisas. Porém, ela afirma que o adulto que foi uma criança chatinha pra comer pode desenvolver uma série de complicações.

Recentemente, foi incluído no tratado de psiquiatria o Transtorno Alimentar Restritivo / Evitativo (TARE). Ou seja, já existe uma doença catalogada que pode ser derivada daquela frescurinha à mesa. Porém, é preciso cautela para definir o que é patológico e o que não é.

Três fatores devem ser observados na pessoa considerada “chata” pra comer: perda de peso ou dificuldade
de ganho com deficiência nutricional (que não seja por causas como miséria ou limitação social); interferência
negativa no convívio social ou nas atividades do dia-a-dia (quando a pessoa evita, por exemplo, se relacionar ou participar de um almoço em família por conta da restrição alimentar); e sofrimento intenso. Se o caso não se encaixar neste perfil, mas ainda assim causa desconforto na vida de alguém, a rejeição alimentar pode ser tratada com outras abordagens, como a psicoterapia ou até mesmo, a fonoaudiologia em
certas situações.

“A maioria dos adolescentes e adultos que chegam aqui com TARE teve situações traumáticas na infância
como abuso, doenças graves ou situações de estresse extremo”, diz a psiquiatra. “Nossa relação com o
alimento é ligada a nossa relação psíquica e emocional com nós mesmos e com o mundo. Tanto que é raro um
transtorno alimentar aparecer isolado, geralmente vem junto a ansiedade, depressão, transtorno obsessivo-compulsivo e outros problemas”.

Segundo ela, os pais têm de ficar atentos à reação da criança quando ela entra em contato com a comida.
“Para uma criança dizer que não gosta de determinado sabor, ela tem de ter sido apresentada a ele pelo menos 10 vezes. Mas, vamos reconhecer, hoje em dia que pai e que mãe tem essa disponibilidade? A questão
é complicada e de fundo social também”.

A mesa continua posta e a nossa relação com a comida cada vez mais complexa. Sigo curiosa com o menu
branco da minha mãe e tentando entender por que um chuchu, coitado, pode se transformar no arqui
inimigo de alguém. Claro, com menos julgamento.

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