Eu só queria um copo limpo

Eu só queria um copo limpo

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Taça de cerveja cheia, em cima de um tronco de árvore, com um fundo de por do sol. Foto: George Cox via UnsplashTaça de cerveja cheia, em cima de um tronco de árvore, com um fundo de por do sol. Foto: George Cox via Unsplash

Lavei as mãos e passei álcool em gel. Meu trabalho de sommelier antes era passar o álcool do copo para o corpo. No meio dessa crise, eu não sei quais lembranças do mercado cervejeiro serão saudades esperando o tempo passar ou lembranças que não vão voltar.

Tenho refletido bastante nos últimos dias. O mercado cervejeiro artesanal como eu conheço trabalhou 10 anos em crescimento, quedas, avanços, muros, pedras, economias, desejos, estudos e esforços. O sonho azedou. Se você me esperava esperançosa, não estou nesse momento. Depende na verdade da hora do dia, e do quanto de jornal e Twitter eu consumi. Notícias mais amargas que aquela boa e velha Double IPA.

Não que a gente estivesse sempre esperando uma super guinada nos ínfimos números que temos, de apenas um dígito de porcentagem frente à grande indústria, mas sonho que se sonha junto…. Pois tinha muita gente brassando o sonho e investimento, muito dinheiro na cultura cervejeira.

Tinha começado a rascunhar um conteúdo, algo como 2010/2020 falando sobre acontecimentos do mercado nos últimos 10 anos. Como é que se escreve sobre o que está acontecendo? A questão é que eu não quero ser otimista agora, não nesse texto. Não hoje. A percepção que eu tenho é que vamos viver um saudosismo. Um #tbt infinito de quando a gente podia tomar cerveja artesanal pelas ruas do país. Um monte de bares e restaurantes sendo inundados de boas escolhas, de ótimos sabores, de vida colorida em latas e garrafas, de produções locais.

A gente curtiu uma aglomeração cervejeira hein? Altas filas para a IPA hype. Poucas, mas conscientes filas para as lambics. Eventos cervejeiros lotados de pessoas que tinham acabado de chegar ou que já tinham resolvido ficar. Muita gente se abraçando naquele encontro possível poucas vezes ao ano. Muita gente simples, mas de bom gosto. E que agora vão ter que pensar em como pagar as contas, os boletos infinitos do século XXI.

Quantos colegas vão beber menos e pior? Quantos empregos serão ceifados dentro do setor? Esse grande off flavor da vida, um vírus que nos fez ajoelhar para entender o mundo, vai nos fazer beber pior, de novo. Vamos repensar o mercado, rezar para Baco, acender velas para Ninkasi? Um pouco de tudo, um pouco mais de marketing, uma pitada de sabedoria dos antigos, um novo sonho na economia, formas de consumo e vendas diferentes? Eu não tenho respostas e por isso ainda estou pessimista.

Enquanto abro algumas cervejas restantes na geladeira, começo a pensar. E se algumas daquelas não forem fabricadas novamente.? Eu tenho apego por algumas cervejas. Ao longo da minha carreira bebi muita coisa boa por aí e guardo os sabores na memória. Na onda de limpeza que estou em casa, resolvo limpar o armário das cervejas “de guarda”. Mais história e mais 10 anos de cevada, lúpulo, levedura e criatividade. Tem algumas que são lote 01 de raridades. Outras edições são únicas e comemorativas. Encontro então uma 108, RIS da Invicta. Daquelas cervejas que marcaram minhas papilas, me emocionei. Um gole de esperança. A 108 não existe mais, mas eu tô torcendo muito para as cervejarias, pessoas e histórias da minha cidade e do meu setor, se manterem de pé depois desse tsunami silencioso.

O brinde, esse que a gente faz e quase sempre fez com cerveja, deseja a todos o de sempre, SAÚDE. As mãos e os copos sempre limpos. Uma coisa a gente aprendeu disso tudo né?

foto: George Cox via Unsplash (AQUI)

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