Agak-agak, cozinha e jazz

Agak-agak, cozinha e jazz

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‘Me passa a receita?’

Não posso. Desculpa. Não porque seja “segredo de família” ou coisa do tipo. É segredo até pra mim. Não falo, acredite, pra esnobar. De forma alguma. Não é porque me acho um gênio da cozinha; muito pelo contrário. Fico extremamente feliz quando alguém aprecia a comida que preparei. E se não ficou boa… minha auto-crítica brutal e implacável entra em cena, sem problemas. Sou 100% incapaz de seguir à risca qualquer receita e quando “invento” algo, não tenho a disciplina pra tomar nota das medidas que usei.

Não foi uma escolha racional no início, mas à medida que fui aprendendo, foi se cristalizando de forma mais… ideológica. Deixou de ser uma  expressão da minha natural desorganização para se tornar uma forma de apreciar a beleza do improviso, da intuição… e principalmente, na confiança nos próprios sentidos. Assim como no jazz (outra paixão de décadas), só que com panelas, frigideiras, facas e espátulas, em vez de saxofones, trumpetes, pianos, guitarras e baterias.

Outro dia, li – e fiquei maravilhado – que os malaios têm uma expressão pra isso: agak-agak. Agak, se as buscas na internet estiverem corretas, significa “estimativa”, “palpite”. Pelo pouco que li, um componente importante da cultura culinária deles… e provavelmente no resto do mundo também, só que com nomes diferentes. Na região do Brasil em que fui criado, dizia-se que é medir as quantidades “no olho”. Em fóruns de cozinheiros amadores e entusiastas de culinária, já vi diversas variações da seguinte brincadeira: “Coloco [ingrediente x)] até sentir que meus ancestrais ficariam satisfeitos”. É bem por aí.

É um caminho que tem vantagens e, claro, desvantagens. As desvantagens mais óbvias são a imprevisibilidade e a inconsistência. Você nunca tem certeza do que vai sair e o prato feito no dia x será muito provavelmente diferente do feito no dia y. Para quem é cozinheiro profissional, essas são duas coisas absolutamente intoleráveis, por motivos óbvios. Todos os clientes têm que receber o mesmo prato, os mesmos sabores, as mesmas texturas, cada vez que visitam o restaurante.

Lasanha não, A lasanha do Marcio, nem parece caseira! Foto: Celular do autor

Respeito imensamente quem faz da cozinha sua forma de ganhar a vida, aprendo tudo o que posso assistindo vídeos e mais vídeos destes profissionais… mas preferi ficar com o conforto proporcionado pela liberdade de errar a mão no prato sem que isso custe um cliente. Só tenho que tomar cuidado pra não errar tanto na mão que custe uma amizade – o que ainda não ocorreu.

Improvisar na cozinha, porém, não significa fazer qualquer coisa a esmo. Para improvisar, novamente como no jazz, é preciso conhecer fundamentos. Sem uma base mínima de conhecimento técnico, não há como progredir significativamente por meio da tentativa e erro.

Na música, é preciso conhecer notas e acordes que complementam e se opõem, técnicas para extrair certos timbres dos instrumentos, noções da física das ondas sonoras. Na cozinha, é preciso entender o manuseio dos apetrechos (às vezes até questão de segurança, como no caso das facas), como os sabores e aromas se combinam e se contrapõem, noções de química e física da interação dos alimentos entre si e com o ar, a água e o fogo.

Das centenas de horas de videos que assisti, pelo menos 75% devem ter se concentrado em técnicas e apenas uns 15% em receitas – os restantes 10% foram sobre detalhes de alguns processos frequentemente empregados, como reações de Maillard e fermentação. E é assim, me preocupando com proporções em vez de gramas, com aparência e textura em vez de tempo de cozimento, vou improvisando pela cozinha, em busca de comidas para agradar as pessoas por quem tenho apreço (no espírito lá da frase do Mia Couto).

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