BJCP não é Livro Sagrado, ou: Um Breve (Mas Não Muito) Ensaio sobre Taxonomia Cervejeira

BJCP não é Livro Sagrado, ou: Um Breve (Mas Não Muito) Ensaio sobre Taxonomia Cervejeira

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painel escrito beerLance Anderson via Unsplash

Photo by Lance Anderson on Unsplash

Faz uns bons seis anos que o causo se desenrolou. Eu tinha uns outros seis anos bebendo cervejas ótimas, boas, razoáveis e ruins, estudando freneticamente sobre o assunto… Acreditava que já entendia razoavelmente. Quebrei a cara de maneira inesperada papeando com um veterano bebedor inglês. A certa altura da conversa descontraída, ele fez a pergunta que me desconcertou:

– Qual a diferença entre ale e cerveja (beer)?

Primeiro, achei que tinha entendido errado. Depois, achei que alguém (ele ou eu, ou os dois) já tinha bebido além da conta. Mas não, insistiu, não havia nada errado com a pergunta. Senti que não era uma pergunta ingênua. Tinha cor e aroma de pegadinha. Rebati, categórico:

– Não existe diferença. Ale é só um tipo de cerveja (beer).

O sorrisinho de satisfação dele me irritou. Disse, no seu melhor tom condescendente britânico, que eu estava errado, e respondeu à própria pergunta com algo que me soou ultrajante. Comecei a – supostamente – ensinar-lhe (suprema presunção) resumidamente tudo o que tinha lido sobre o assunto até então.

… Blablablá duas “famílias” de cerveja, ales e lagers, diferenciadas pela fermentação… blablablá nomes científicos das leveduras… blablá pesquisas dos genomas e provável histórico… blablablá… blablablá…

Nada adiantou. O sorrisinho condescendente continuava lá. Capitulei. Nos despedimos com ele recomendando que eu pesquisasse mais. Chegando em casa, segui a recomendação. No fundo, esperando achar algo que o desmentisse, e que confirmasse tudo o que eu dissera. Buscando o doce conforto egocêntrico do viés de confirmação.

Não demorei a achar um texto do Martyn Cornell – jornalista cujo trabalho já conhecia um pouco e admirava bastante – para comprovar que eu estava profundamente equivocado. A resposta do britânico fazia sentido – ainda que de um certo ponto de vista. Após aquela pontada de frustração de ser confrontado com a minha falta de conhecimento, bola pra frente. Devorei o artigo, e alguns outros, e mais uma vez, consegui remover um tijolinho da Catedral da Minha Santa Ignorância (doravante denominada CMSI, pra facilitar).

Sem entrar nos detalhes históricos e científicos, porque não é a intenção aqui, o episódio me ensinou uma lição fundamental: o esforço humano para catalogar os diferentes estilos de cerveja evoluiu assombrosamente com o passar dos milênios. Nasceu da necessidade de controle governamental das matérias-primas (as legislações antigas que definiam os insumos a serem utilizados em cada tipo) para fins de controle tributário para acolher uma espécie primitiva de “denominação de origem controlada” de cunho geográfico para enfim se estender às características sensoriais.

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O marco mais recente dessa evolução, que ajudou a moldar a visão contemporânea destas divisões entre as cervejas, foram os trabalhos do jornalista inglês Michael Jackson, a partir da década de 1970 na imprensa (e de seus contemporâneos, é claro) e a partir dos anos 1980 na TV. Mas Jackson era mais um cronista do que um “cientista natural” e só na década seguinte que, nos EUA, integrantes do Programa de Certificação de Juízes de Cerveja começaram a publicar seus primeiros rascunhos do que se tornaria o atual guia de estilos.

Pesquisando a legislação brasileira, não muitos meses depois do episódio com o inglês, deparei-me com um decreto de 1973 que listava dez variedades de cervejas como alvos de seus efeitos – Pilsen, Export, Lager, Dortmunder, München Bock, Malzbier, Ale, Stout, Porter e Weissbier. Não trazia nenhum tipo de definição ou descrição do que significavam. Sob a ótica atual bejotacepetizada, pode-se brincar que é uma afronta à classificação “correta” das bebidas. A realidade é mais complexa, portanto, mais difícil de assimilar.

O que podemos dizer que este esforço de classificação de estilos para fins de competição mudou na codificação dos estilos foi a tradução destes em manuais descritos detalhadamente nos aspectos técnicos – mas, por variados e óbvios motivos, sucintamente nos aspectos históricos. Isto faz da codificação técnica dos estilos a proverbial faca de dois gumes. Por um lado, permite a organização das competições cervejeiras. Por outro, abre espaço para enrijecimento, supressão ou cooptação da criatividade cervejeira.

O grande efeito deletério que a “bejotacepetização” do público cervejeiro neófito vem provocando é uma inversão fundamental de valores. Como se estilo x ou y existisse porque está no manual. Se o estilo x ou y não está registrado nestes manuais, não existe. Ou, no mínimo, não é legítimo.

Ocorre, porém, que o estilo Kölsch não existe porque o BJCP disse que existe. O estilo Kölsch existe porque é uma tradição antiquíssima de uma região encravada no extremo ocidente do que hoje se chama Alemanha, mas que foi parte do Império Romano, quase 2 milênios atrás, foi invadida pelos Francos… e por aí vai. O estilo Kölsch existe porque as pessoas decidiram assim. Poderia usar outros N exemplos, lambics, saisons, bocks… mas a lógica é a mesma.

Não acredita em mim? Sem problema, faça o teste. Experimente dizer pro cervejeiro cuja família mora na cidade e fabrica cerveja há séculos, que é o que faz não é uma “verdadeira” Kölsch porque tem 1 ponto percentual de AbV a mais ou 20 IBUs a menos do que os limites da categoria nos manuais. Depois me conte como foi o diálogo, combinado?

Há cervejeiros que produzem cervejas de modo tal que julgaram necessário batizá-las coletivamente para diferenciar das demais, e há pessoas que as bebem. Se os dois fatores forem expressivos o suficiente, em termos de quantidade e relevância, guias como do BJCP e da BA podem reconhecer sua existência, mas não são, nem pretendem ser, chancela oficial para a existência de um estilo.

A onda de “beerevangelização” favorece o surgimento dos devotos fanáticos que tratam um guia como Livro Sagrado ditado ipsis literis pelas divindades cervejeiras e registrados pelos profetas da birita. Chegamos ao ponto de haver um contingente significativo de cervejeiros criando bebidas que supostamente rompem com os parâmetros, mas, na prática só fazem legitimá-los. Na era do produto, a lógica da decodificação e categorização das cervejas, que transicionou do registro econômico para o registro social e histórico, e, por fim, educacional, e é explorado pelo Mercado como ferramenta de venda. O leitor certamente conseguirá pensar em alguns exemplos.

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O famoso infográfico “The Magnificent Multitude of Beer”, lançado pelo Pop Chart Lab em 2013, e repaginado por aí como “Beer Taxonomy” – expressão pela qual me encantei a primeira vista – também teve um duplo papel. Ao mesmo tempo em que permitiu a popularização da ideia de estilos diversos de cerveja, ajudou a cristalizar o formato moderno da “árvore cervejeira” como verdade suprema.

Antes que comecem a dizer que estou atacando o bejotacepê, ou falando mal do bejotacepê, deixo claro: não há dúvidas de que os guias são documentos importantíssimos. Os juízes que atendem aos critérios de sua certificação – grupo no qual tenho diversos amigos e conhecidos são via de regra pessoas profundamente conhecedoras dos processos de produção e das características esperadas de cada estilo. Mas sua função primária não é historiografar os estilos de cerveja, e sim uniformizar critérios de comparação de cervejas com a mesma denominação de estilo, para fins de competição. O período decorrido desde o início da mais recente tendência de catalogação dos estilos, que expliquei acima, de míseras décadas, não é mais do que uns 0,5% dos milênios de história registrada dos fermentados de cereais. Fora da lógica competitiva, qualquer análise que se pretenda rigorosa, principalmente se profissional, de um estilo cervejeiro precisa levar em conta a evolução da taxonomia cervejeira.

Mas se você quiser só mesmo beber umas sem se preocupar com nada disso, tá tudo bem também. 🙂


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