Como seu fígado

Como seu fígado

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lukas budimaier via unsplash

Talvez seja trauma de infância – como sempre o é, na grande parte das vezes, aliás, quando falamos de comida. Mas a questão é que minha mãe tinha (tem ainda, ainda que mais rara hoje) uma expressão esquisita quando ficava muito brava com a gente, especialmente comigo, que sempre dei mais motivos pra isso, confesso. “Vou comer seu fígado”, dizia, olhos pulando das órbitas, veias saltando pelo pescoço, num claro sinal pra eu correr – estava possessa.

Fígado, eu pensava, não podia ser bom, então… e cresci tentando evitá-lo ao máximo, independente da forma que ele tivesse. Ela mesma (vai entender…) preparava fígado acebolado no almoço, queria me fazer verter uma tampinha de óleo de fígado de bacalhau. Eu fugia, deslizando com destreza, tal como um bacalhau besuntado no próprio óleo de seu fígado. Eca!

O sabor metalizado demais fazia meu estômago revirar só de pensar em colocar qualquer variação na boca… Até mesmo o caro e “refinado” foie gras eu já dispensei inúmeras vezes. Mas eu cresci, meu paladar se desenvolveu e fui acabar me tornando jornalista de gastronomia, desses que se espera que coma de tudo – inclusive fígados, entre outras iguarias menos, digamos, convencionais (e que, agora, gosta, sim, de foie gras… desde que na medida). Mas a verdade é que nem eu, nem o mais renomado crítico de gastronomia, nem mesmo você, é claro, estamos livres dos preconceitos e das restrições com alimentos.

O psicólogo Paul Rozin, da Universidade da Pennsylvania e um dos maiores estudiosos da nossa relação com o gosto, afirma que não existe ninguém no mundo que não desgoste ou que não tenha nojo de algum alimento. “Algumas pessoas são sensíveis ao gosto amargo, como do café. Outros não gostam de ovos ou legumes. Algumas pessoas têm um monte de categorias de alimentos de que não gostam, como carnes e verduras, mas nós realmente não sabemos cientificamente por que”, ele me disse certa vez, em uma entrevista.

Mas a questão tem muito mais a ver com ocasiões culturais do que biológicas, ele diz. Como onívoros, nascemos para comer de tudo e, durante os anos, principalmente os iniciais da nossa vida, são determinantes para constituirmos não apenas o gosto como paladar, mas também o gosto como preferência, escolha. E aí está a chave. Algumas coisas ficam internalizadas nos nossos sulcos cerebrais sem que a gente nem saiba por que ou como foram parar lá: nojo de caqui, por exemplo, aversão a chuchu, limitação a miúdos, cisma com o pobre quiabo. “Muitas das pessoas que dizem ter nojo de insetos muito provavelmente já ingeriram algum tipo quando eram crianças, por curiosidade. O que mostra como nosso preconceito é algo adquirido”, ele defende. Pois é, hoje você pode ter nojo do fato dos asiáticos comerem alguns artrópodes, mas pode ser que já tenha engolido alguma formiga há algumas décadas, por que não?

A percepção de um alimento é muito mais importante sobre a decisão de comê-lo do que o sabor do alimento em si, vai por mim. É muito mais uma questão de preconceito – ou mesmo pré-conceito, se preferir. E vamos lá, nesses tempos atuais, não rola mais ter preconceito. Ir lá comer e não gostar, tudo bem, é direito seu… Mas não gostar antes de provar é auto-sabotagem, é se privar de uma experiência, de expandir seu paladar. Não tá com nada. É preciso, sim, sair da zona de conforto para termos a delícia que é a possibilidade da descoberta. Principalmente à mesa. Eu mesmo, avesso à fígado que sou, me deparei com um excelente patê de fígado de galinha dia desses no restaurante de um amigo. Com dulçor, acidez equilibrada, textura aveludada, comi de uma só vez umas três torradinhas besuntadas do creme rosado. E me deliciei. A ponto, vejam só, de hoje pensar sozinho quando vejo uma galinha ciscando por aí: “vou comer seu fígado!”.

 

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