A cerveja heurística

A cerveja heurística

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Trio de cervejas na taça ISO. Foto: Thiago MonteiroTrio de cervejas na taça ISO. Foto: Thiago Monteiro

Estava escrito “de tons caramelos, uma paleta de nuances marrons conforme a luz, parecia aos olhos que seriam notas adocicadas, mas já no aroma se mostrou ampla, complexa e equilibrada. No primeiro gole, aquele impacto entre temperatura, textura e também o Ph. No segundo gole, um maior entendimento do que estava acontecendo ali, bem embaixo do meu nariz. ”

Eu e meu paladar somos treinados. Reconheço “uma nota de umburana” de longe. O amadeirado dela, em uma cerveja recém-aberta! Mas passaria despercebida por uma árvore. Estamos sempre ignorantes em algo, neste mundo tão complexo. É preciso escolher de grão em grão aquilo que queremos defender. Um dia meu papo estará cheio. Ainda me falta entender melhor a influência da aveia, do trigo, do centeio, da própria cevada e também milho, arroz e o outros cereais que compõe o que é e o que foi cerveja no mundo.

A cerveja do primeiro parágrafo, você já sabe qual é? Pela descrição, arrisca um palpite? Quem curte a cerveja em um nível Sherlock Holmes, em geral usa e muito do seu intelectual para curtir o momento, a descoberta. Poderia ser uma bitter? Poderia. Mas eu comentei que era complexa. Elementar meus caros. Precisamos usar a cabeça para algumas charadas.

Para a jornalista Agnès Graurt o conceito de intelectual “Seria a capacidade de cada pessoa tomar decisões, pensar e aprender tanto uma atividade motora como um conceito. ” Já ouviu dizer que tem pessoas que bebem cerveja e nem sequer sabem quais são os ingredientes? Até tenho amigos. Mas é normal. Como disse ali em cima, escolhemos aquilo que queremos desvendar. Eu não sei como se faz uma calça jeans, detalhes da colheita do algodão, maquinário e tempo para desenhar, desenvolver uma calça. Compro e uso a que for mais confortável e dentro do meu orçamento. Um estudo diz que tomamos 35.000 decisões por dia!

Dias atrás escrevi um texto sobre cerveja e moda. Descobri que durante séculos roupas vermelhas estavam no auge e eram uma forma da elite se diferenciar. Para isso, colocaram florestas a baixo, buscando pelo pigmento vermelho. Um horror. E a gente se veste apenas pensando em que cores combinam mais com o cabelo, o dia, o evento. E assim as pessoas bebem, pensando apenas se hoje é dia de uma cerveja lager na long neck ou aquele chope gelado.

A cerveja, com a vestimenta do rótulo e design caprichado, com um toque de publicidade e uma jogada de marketing, se tornou aos olhos uma ampla folha em branco, onde há informações obrigatórias, mas existem dados que são pistas ao paladar. Ao olhar uma lata na prateleira, meu cérebro degusta antes todas as informações que existem ali, sejam elas narrativas de uma estória ou descrição sensorial verdadeira. Uma maneira de simplificar questões complexas, apenas com afirmações mais assertivas escritas naquela embalagem.

Pesquisando e vagando para escrever esse texto, após tomar alguns goles de Bite & Blow (NEIPA de aveia) e depois alguns de Dserve Guava (Pastry Sour IPA de goiaba), achei um termo quase sem querer, mas que encaixava aqui perfeitamente. O conceito de heurística, que se baseia em usabilidade, na experiência e interação. E hoje em dia muito usado em empresas de tecnologia, como um design thinking.

“Segundo o Dicionário Michaelis Online, esse conceito é uma “ciência ou arte que leva à invenção e descoberta dos fatos”.” Echos.

A cerveja heurística seria um encontro de ideias, um acontecimento. E a cerveja foi descoberta, por muitos povos que aprenderam a fermentar, como a própria resposta da natureza. A cerveja em determinada época aconteceu em muitos lugares, com diferentes grãos. Achei o termo interessante de ser colocado junto à cultura cervejeira.

“A capacidade heurística é uma característica humana que, do lado positivo, pode ser descrita como a arte de descobrir e inventar ou resolver problemas mediante a experiência (própria ou observada), somada à criatividade e ao pensamento lateral ou pensamento divergente. ” (Wiki)

Tem o lado negativo também, que é “um processo geralmente aplicado de forma automática, inconsciente” (Wiki). Então me pareceu também aqueles que bebem, sem trabalhar, sem aquele olhar tão crítico. E com isso, estamos sujeitos a errar e julgar de forma estereotipada.

Esse conceito que eu propus aqui, nasce da mente de um matemático, chamado George Pólya, em 1945. Aqui seria uma brincadeira, com o propósito de olhar a cerveja, diferente das reflexões que temos hoje em dia. Usei de forma genérica, para falar sobre escolhas e ideias.

Me parece que todas as pessoas apreciadoras e curiosas que provam as cervejas ditas artesanais hoje em dia, refletem sobre o líquido, mais do que apenas o bebem. Para aqueles que trabalham no mercado cervejeiro, a criatividade, a fome de conteúdo e conhecimento são comuns. Estamos sempre sedentos por esta cultura. Desenhar uma receita de cerveja é também resolver problemas, ajustar ingredientes, inventar novas técnicas, observar e aprender com as leveduras e reações para cada decisão.

A cultura cervejeira intelectual passa por eu me conhecer, saber o que eu gosto, entender os meus limites, saber o que é arte, o que é ritual. O que pode ser simples, sendo complexo. Não é sobre os abismos que precisamos resolver. É sobre usarmos esse conhecimento para transmitir e compartilhar essa evolução que passa por cima de nós, uma chamada do tempo. Hoje bebemos a melhor cerveja. E o fazemos porque ao longo dos séculos muitas pessoas usaram do seu intelectual para pensar e transformar o que antes era só um mingau. A cerveja foi resolvendo vários problemas e dores da sociedade, com tecnologia, com pesquisa e também com seus sabores e símbolos.

Só de fechar os olhos e meditar por um minuto, acessando os arquivos mentais da minha memória, consigo lembrar dos sabores de uma Cantillon Lambic Rosé de Gambrinus, minha favorita de todas que provei em uma pequena e cultuada cervejaria em um bairro afastado do Centro de Bruxelas, na Bélgica. Eu tenho uma experiência com a cerveja também de forma intelectual. Ou seja, mental. De memória. De experiência.

A melhor cerveja é a que tem em suas mãos. As sutilezas fazem parte de se emocionar com os significados que estão acontecendo o tempo todo. Mas principalmente ao vivo e a cores, transmitindo para seu intelecto esse prazer. A cerveja que você descobre, que você comemora, que alenta a vida dos pensamentos e dilemas. A cerveja do primeiro parágrafo? A que você quiser, eu apenas inventei uma combinação que realmente gosto e ainda deixei espaço para construir outros sabores.

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