Celebrando a vida e o umami no Aizomê

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Aniversário sempre foi uma data de silêncios pra mim. Fui nascer logo em janeiro, no meio das férias escolares. A cidade vazia, amigos viajando e panelas de brigadeiro grandes demais para duas pessoas. Os “parabéns” eram em tons mais baixos, mas nem por isso murchos.

Me satisfazia essa realidade, não era algo frustrante, nunca esperei por festas, comemorações estrondosas, surpresas. Eu queria mesmo era o bom e velho bolinho e, sobretudo, me sentir à vontade e tranquila para o que estava por vir.

Neste ano celebrei mais uma virada de década, data importante. Como de costume, escolhi celebrar de forma intimista. Combinei de ir ao Aizomê, restaurante da chef Telma Shiraishi.

Fiz uma reserva, ficamos no zashiki, uma salinha particular para até quatro pessoas, fechada por noren, aquelas cortininhas bem características. Precisamos tirar os sapatos e nos curvar para entrar, cumprindo um pequeno ritual de humildade.

No outro canto da sala havia um singelo vaso de cerâmica com algumas folhagens e dois galhos de orquídea chuva de ouro – Ikebana, a arte japonesa dos arranjos de flor. Naquele simples vaso, estava expressa toda a beleza e a transitoriedade da natureza. De mim mesma. Passado, presente e futuro se uniam em orquídeas abertas, outras desabrochando e também minúsculos botões.

A COZINHA DE TODOS

Escolhi o Aizomê, porque me fascino pela cultura oriental e gosto, sobretudo, do poder que a comida tem de conectar os que chegam com os que já estão. A comida rompe barreiras, sejam elas geográficas, sociais, sexuais, culturais. Cores, texturas, sabores, idiomas se integram e, dessa maneira, fazem surgir coisas novas.

Telma Shiraishi é a terceira geração de uma família de imigrantes japoneses. Para ela, cozinhar é “fazer uma conexão com o passado e honrar seus avós”. Me inspira pensar que ela conseguiu superar os preconceitos que envolvem as mulheres na cozinha e fez história ao, em 2019, tornar-se embaixadora para Difusão da Culinária Japonesa, a primeira brasileira a receber a honraria.

Não é só isso. Telma respeita os valores de suas raízes, mas tem liberdade criativa e usa ingredientes de origem brasileira na composição dos pratos. É uma linda e autêntica fusão.

Há alguns anos tive a oportunidade de conversar com ela quando escrevia uma matéria sobre “desperdício” para a revista Vida Simples. Me marcou sua fala: “Tento conhecer os meus produtos e, na medida do possível, meus produtores. Procuro respeitar os ingredientes e o trabalho de quem os plantou, criou, colheu ou pescou.” – e no meu jantar de aniversário, tive a oportunidade de sentir essas relações estreitas e amorosas no sabor da comida.

COGUMELOS, SUSHIS E SOBAS

O mais legal é saber que o restaurante segue o mottainai, um valor contra o desperdício – a chef aproveita o máximo do alimento, sejam os talos ou todas as partes do peixe para a confecção de caldos.

Imagem: Aizomê

Não sou crítica gastronômica e a minha intenção aqui não é fazer uma análise técnica, mas preciso falar sobre as sensações profundas que foram estimuladas em mim a partir da comida no Aizomê.

Não é coisa pouca ser levada para um lugar etéreo a partir de “simples” cogumelos salteados. A textura firme do ingrediente me fez sentir seu frescor e suculência. Minha imaginação alcançou outros planos, jardins úmidos de onde brotam fungos de todas as partes.

Depois de uma degustação de sushis e sashimis que eram impecáveis, veio o suprassumo da noite para mim: as massas ensopadas. Pedimos tanto soba quanto udon para experimentar. A diferença é que a primeira é fininha, feita de trigo sarraceno; enquanto a segunda é mais grossa, de trigo branco, e tem uma consistência mais firme no centro e gomosa nas extremidades. Ambas as massas vieram mergulhadas em um dashi, o caldo-base da culinária japonesa.

PERCEBENDO O UMAMI

 

Udon e soba do Aizomê, acompanhados de tempurá de legumes, kamaboko (uma espécie de kani de peixe) e katsobushi (raspas de peixe bonito curado e defumado). Imagem: Camilla Cristini
Udon e soba, acompanhados de tempurá de legumes, kamaboko (uma espécie de kani de peixe) e katsobushi (raspas de peixe bonito curado e defumado). Imagem: Camilla Cristini

Eu queria que aquele caldo nunca acabasse, senti algo muito singular, nunca conseguiria descrever de maneira precisa. Depois de ver minha expressão, a simpática garçonete cujo nome infelizmente me escapou, citou que o caldo era feito à base de katsobushi (raspas de peixe bonito curado e defumado) e kombu (alga) e que era “praticamente um concentrado de umami”.

Aqui no Ocidente reconhecemos com facilidade os quatro gostoso básicos: o doce, o salgado, o amargo e o azedo. Ainda estamos nos acostumando com a ideia de um quinto, o umami. Esse gosto já é cientificamente comprovado e foi descoberto no Japão por um pesquisador chamado Kikunae Ikeda depois de fazer a extração do ácido glutâmico – a substância responsável pela sensação – da alga kombu.

Em um vídeo explicativo para a Japan House, a farmacêutica e doutora em Ciência de Alimentos Hellen Maluly, explica que “na boca, o umami apresenta características muito específicas, como o aumento da salivação e o prolongamento do sabor.” A chef Telma dá o ultimato: “é a percepção da “deliciosidade”, que faz você querer mais.”

Não à toa os pratos do Aizomê me pareceram perfeitos. O dashi era puro conforto; criou harmonia no meu corpo, mente e alma; se manteve na minha língua, como uma lembrança feliz na qual nos prendemos e vez ou outra resgatamos para ver brotar leveza e amor. Não é exagero, aquela cozinha era de uma sensibilidade inflamável: delicada e perigosa.

Para quem ficou curioso e tem fácil acesso aos ingredientes nipônicos, uma receita básica de Dashi. Fonte: Japan House

FIM DE NOITE NO AIZOMÊ

Bolo de matchá com frutas vermelhas do Aizomê. 誕生日おめでとう。,ou, tanjyoubi omedetou – feliz aniversário! Imagem: Camilla Cristini
Bolo de matchá com frutas vermelhas. 誕生日おめでとう。,ou, tanjyoubi omedetou – feliz aniversário! Imagem: Camilla Cristini

Quando achei que não pudesse me surpreender mais, chegou a hora de apagar as velinhas. Meu bolo era especial: de matchá, bem verdinho, com frutas vermelhas e chantilly. A confeitaria japonesa é conhecida pela leveza, e foi justamente assim que terminei a noite. Me emocionei, olhei para a vida que já foi com gratidão e respeito – valores que compõem algumas das filosofias nipônicas.

Senti viva a minha apreciação pela beleza das coisas corriqueiras. Valorizei ainda mais meus aniversários silenciosos. Gostei especialmente de finalmente aprender a relacioná-los com o elemento japonês “MA” – representado pelo ideograma 間 –, que significa entre-espaço, devir, vazio com sentido, silêncio.

Me apropriando dos textos da pesquisadora Michiko Okano, explico que MA é como o espaço entre o portal e o santuário xintoísta: enquanto se percorre esse caminho, o visitante se prepara espiritualmente para entrar no espaço sagrado. Vai abandonando as questões mundanas para estar totalmente imerso na experiência que está por vir. Ou seja, além de indicar um espaço físico entre dois elementos, ele também representa um tempo de preparo necessário da mente e da alma. Não é bonito mergulhar nas novas idades assim?

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