A cerveja pertence a todos

A cerveja pertence a todos

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A cerveja não pertence aos brancos. É um patrimônio a ser celebrado por toda a humanidade.

Por se identificar explicitamente com a origem étnica de seus criadores, a porto-alegrense Implicantes, primeira cervejaria negra do Brasil, foi alvo de uma onda de ofensas racistas nas redes sociais, ao promover uma ação de financiamento coletivo para manter suas atividades durante a pandemia do coronavírus.

Não conheço os donos da Implicantes. Nunca bebi suas cervejas, talvez nunca venha a ter oportunidade de bebê-las. Sou branco, portanto tenho o privilégio de nunca ter sofrido preconceito devido à cor da minha pele. Na prática, sendo friamente calculista, o episódio não me afeta. Mas manifestar-se contra quem prefere propagar menosprezo e ódio é obrigação de todos os que prezam pela dignidade do próximo.

Apenas repudiar a atitude dos racistas não basta. Ainda mais porque, neste caso, além dos insultos degradantes, parte dos envolvidos tentou legitimar a atitude sob o (falso) argumento de que a Implicantes estaria “se apropriando culturalmente de uma bebida de brancos (nórdicos)”. Tal afirmação pode ser explicada pela ignorância ou pela má-fé de quem a proferiu. Ou ambas, possivelmente.

Fato é que não se pode deixar uma mentira deste tipo proliferar.

A invenção – ou descoberta – da cerveja antecede a história humana registrada. Não há, portanto, como definir exatamente quando ou onde surgiu, ou quem a inventou. Ou mesmo se foi inventada por múltiplos povos simultaneamente, hipótese que conta com considerável suporte entre os pesquisadores especializados.

Analisando as evidências arqueológicas disponíveis atualmente, porém, pode-se afirmar com tranquilidade que povos da África, do Oriente Médio e do Extremo Oriente produziam bebidas fermentadas de grãos maltados e não-maltados temperados com especiarias e frutas, ou seja, o que hoje conhecemos como cerveja, milênios antes dos povos nórdicos e germânicos.

Milênios.

Os vestígios mais antigos de cerveja na Europa vem dos resíduos de uma ânfora encontrada em Kulmbach, no que hoje é a Alemanha, datada de 800 a.C. Os tabletes proto-cuneiforme em que foram escritos os versos do Hino à Ninkasi, deusa da cerveja na cultura dos sumérios (povo da Mesopotâmia), antecedem estes em cerca de 1.000 anos.

Voltando mais oito séculos na história dos sumérios, encontram-se tabletes datados retratando a cerveja sendo bebida por grupos de pessoas, no primeiro registro da importância da bebida para uma cultura local. Os sumérios também podem ser creditados com a criação do conceito de estilos de cerveja, já que seus tabletes retratavam variações como cerveja dourada (kaš sig), cerveja escura doce (kaš ge duga), cerveja vermelha (kaš sa) e cerveja coada (kaš sur ra).

O vestígio químico mais antigo da produção de cerveja de cevada que se tem conhecimento atualmente vem da mesma região, e é ainda mais antigo – de 3500 a.C. Foi encontrado durante a investigação do sítio arqueológico de Godin Tepe, nas montanhas Zagros, no que hoje é o Irã.

No sítio arqueológico de Jiahu (atual China), traços de bebida fermentada de arroz, frutas e mel são ainda mais antigos, datados de 7000 a.C. Recentes descobertas no material coletado em meados do século passado no sítio de Raqefet (atual Israel), onde onde viviam os Natufianos, revelam indícios de produção da bebida que remontam a 11000 a.C.

Some-se a isso a fundamental contribuição de um povo africano – os egípcios – para que a bebida se tornasse um aspecto fundamental da sociedade, passasse a ser produzida em larga escala em fábricas especializadas, como mostram as descobertas no sítio de Hierakonpolis, também datadas de cerca de 3500 a.C.. E mais, que suas técnicas de produção fossem transmitidas aos gregos e aos romanos, que tiveram influência fundamental na formação da cultura europeia.

Faltam, infelizmente, pesquisas arqueológicas mais aprofundadas para avaliar adequadamente a antiguidade das cervejas nativas de outros povos africanos, como a Umqombothi dos bantu, feitas a base de sorgo e outros grãos – que são produzidas até hoje. Mas é lógico inferir que as experiências dos povos do restante do continente com as bebidas fermentadas de grãos também remontam a tempos pré-históricos.

O resultado de qualquer estudo honesto e aprofundado sobre a história da bebida revela uma verdade única: a cerveja é um patrimônio de toda a humanidade, não de um povo ou outro, e deve ser celebrada como tal. Sem preconceitos, sem ódio, sem discriminação.

*atualização: Saiba mais sobre o acontecimento no blog Hora do Gole no artigo Racismo na cerveja: o amargo que não devemos engolir

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