A mercantilização da Gastronomia e seus paradigmas

A mercantilização da Gastronomia e seus paradigmas

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A Gastronomia é uma área do saber e do fazer capaz de resumir algumas das principais características das sociedades e destacar o que há de mais singular em cada uma delas. Ela é, ainda, um meio para que a cultura de um país se reafirme perante as demais, demarcando assim a sua identidade.

Entretanto, não se pode dissociar o conceito de Gastronomia do fato de que, dentro dos atuais determinantes econômicos, ela também se configura como um negócio gerido com base na busca pelo retorno financeiro.

Isto abre espaço para uma interessante reflexão sobre como essas duas esferas, a cultural e a mercadológica, podem se expressar de maneira contraditória no âmbito da Gastronomia. E, para melhor compreender uma das facetas deste paradigma, é primeiro necessário ter o conhecimento de que a noção de “comer bem” que impera no senso
comum está bastante ligada ao padrão francês de qualidade. Isto porque os chefs franceses realizaram uma “colonização cultural” em diversos países da Europa (cujos quais colonizaram as Américas) após o episódio da Revolução Francesa, buscando formas de afirmação identitária que pudessem solucionar o sentimento de dissociação cultural que havia na população francesa daquela época.

Cozinha francesa ditou parâmetros de excelência

Em decorrência disto, o que vimos nos últimos anos foi a prevalência da influência da cultura gastronômica francesa na cozinha profissional, visto que ela permanece como referência de excelência para figuras e instrumentos de relevância social, como é o caso do Guia Michelin, um importante parâmetro de qualidade utilizado tanto pela população em geral – sendo estes os possíveis consumidores de um produto gastronômico -, quanto
por muitos profissionais que atuam na área.

Tal constatação nos leva a um debate atualmente latente: o de que outras culturas gastronômicas acabam desvalorizadas frente aos critérios de avaliação de um público e um mercado fortemente influenciados pela cultura gastronômica francesa.

Para além disso, a tendência da Nouvelle Cuisine fez com que a tradição de algumas das diferentes cozinhas tradicionais se perdesse no tempo e fosse substituída por uma cozinha inventiva, em que há maiores preocupações com a estética e com o espetáculo, do que propriamente com elementos fundamentais da gastronomia, como o sabor.

Estas opiniões até aqui refletidas não são consensuais, mas acredito que a questão apresentada é relevante e que a ela deve ser dispensada a devida atenção, pois concordo que não se pode permitir que a originalidade e a essência da cultura gastronômica de um povo, as suas raízes, seus símbolos, rituais e sua história se percam devido a uma
padronização imposta pelo mercado.

Como cozinheira e gastrônoma, busco uma visão positiva, que inspire os novos profissionais a atuarem no âmbito da gastronomia de forma revolucionária. Neste sentido, penso que o Guia Michelin, a Nouvelle Cuisine e todas as tendências uniformizantes, que por vezes parecem se autopromover contraditoriamente como incentivadoras da diversidade e da originalidade, não devem ser desprezadas e rechaçadas, mas reformuladas sob um novo olhar.

Padrão x identidade gastronômica

Considerando que vivemos e convivemos em um mesmo contexto, marcado pela globalização, onde somos obrigados a lidar com as consequências positivas e negativas que o forte intercâmbio cultural e a predominância de certas culturas sobre outras acarretam, penso que esse processo deve ser debatido, exposto, questionado, para que
assim possa ser superado.

Isto é, creio que a forte influência do mercado e de objetos discutíveis de avaliação gastronômica deva ser combatida, mas não por meio do desprezo e da soberba, mas sim com a exposição e compreensão das subjetividades inerentes, como é o caso da hegemonia cultural (prevalência de uma cultura sobre as demais).

É também interessante e pessoalmente motivante observar que em contrapartida há um crescente movimento de profissionais desta área que ao redor do mundo combatem a padronização e buscam durante este processo resgatar a relevância da cozinha tradicional no imaginário social, destacando a importância econômica, social, ambiental e política que a valorização do produto, da produção, dos produtores, do consumo e de diversos outros fatores associados à cultura local podem trazer para uma comunidade.

Fecho, portanto, com a ideia de que é necessário resgatar a tradição e a valorização da cozinha local, o que não implica na desvalorização de nenhuma das diversas gastronomias que se manifestam em cada território (pois há que se considerar que em um mesmo território, por norma existe uma enorme variedade gastronômica), mas na consonância e na igualdade entre elas em termos de valorização, o que traz muito mais riqueza ao
território e às culturas que dele provém.

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