Diz-me o que comes e te direi quem és

Diz-me o que comes e te direi quem és

- em Artigos

Durante muito tempo aceitei a simples ideia de que comemos para matar a fome. Tudo mudou quando, anos atrás, fui a um restaurante de quilo e diante de uma grande variedade de alimentos, um prato pequeno e o valor alto, precisei decidir o que comer.

Me servi de arroz, feijão, farofa, couve, pastel e ovo de codorna, porque sempre achei que esse fosse o tipo de refeição ideal para se ter no almoço e se sentir satisfeito. Também pedi um suco de laranja, porque eu estava espirrando e considerei que tomar um pouco de vitamina faria bem. Enquanto digeria, perguntei o que teria me feito optar pelo restaurante de quilo ao invés do à la carte vizinho, ou pelo binômio arroz e feijão ao invés de uma lasanha. Também tentei entender o que me levava a acomodar os ovos de codorna frios sobre a farofa ainda quente – e não era pela falta de espaço no prato.

Naquele dia caiu a ficha: as escolhas alimentares são guiadas por muitos elementos além da necessidade de ingestão de nutrientes ou até mesmo dos caprichos do paladar. O historiador italiano Massimo Montanari diz que tudo o que ingerimos é “resultado e representação de processos culturais que preveem a domesticação, a transformação e a reinterpretação da natureza”. Para ele, a comida se apresenta como elemento decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para comunicá-la.


Foto por Chuttersnap da Unsplash

O QUE GUIA AS NOSSAS ESCOLHAS

Os critérios, tão automáticos quanto inconscientes, que definem nossas escolhas, envolvem nossas representações. Eles falam sobre nossa identidade. Denunciam nossos valores, crenças e filosofias. Revelam nossas condições financeiras e posições sociais. Manifestam símbolos, narram nossas histórias, recuperam heranças familiares e memórias afetivas.

Em minha horta cultivo ervas que acredito serem benéficas para a minha digestão. Vou ao mercado vizinho de casa porque me é conveniente, encho o carrinho de produtos que são permitidos pelo meu orçamento e que fazem parte do meu repertório de receitas, herança da minha mãe e avó. Preparo refeições de acordo com o clima do dia, o tempo disponível e a ocasião. E é pensando nisso que defino se as sirvo em panelas, louças ou travessas chiques. Também costumo evitar os produtos industrializados, porque respeito os pequenos produtores e busco opções mais nutritivas. Foi pensando nisso que consegui compreender o famoso aforismo criado pelo gastrônomo francês do século 19 Brillat-Savarin: “Dize-me o que o que comes e te direi quem és”.

A COMIDA COMO LINGUAGEM

O universo da alimentação, que equaciona uma soma dos alimentos, modos de fazer, servir e comer, é linguagem não verbal de comunicação, é código de pertencimento e expressão cultural. Ele nos dá a possibilidade de encontrar um lugar dentro da comunidade e de dialogar com o nosso tempo. Somos o que comemos e comemos o que somos nos aspectos fisiológicos e da alma, ao incorporar psicossocialmente os elementos culturais daquilo que ingerimos. Como diria o sociólogo Jean-Pierre Poulain, para ser um alimento, um produto deve “poder tornar-se significativo, inscrever-se numa rede de comunicações, numa constelação imaginária, numa visão de mundo”. Para ilustrar, relato um episódio descrito por Montanari em seu livro Histórias da Mesa (Ed. Liberdade).

Dante Alighieri, o autor de “A Divina Comédia”, teria despertado a curiosidade de Roberto d’Anjou, o rei de Nápoles, que convidou o escritor para um jantar em sua corte. Depois de uma longa viagem, Dante chegou vestindo roupas simples e, por isso, foi direcionado para um lugar “de pouca visibilidade e escasso prestígio” na mesa, bem longe de onde os personagens mais importantes do reino estavam. Ignorado, foi embora logo que terminou de comer. O rei perguntou por Dante logo que deu falta de seu convidado de honra e ao saber que ele já tinha ido embora, mandou um mensageiro alcançá-lo e convidá-lo para um novo jantar. Ele aceitou, mas desta vez apresentou-se ao rei “com grande cerimônia” e ganhou um “assento de maior importância na geografia simbólica do banquete”. Assim que a comida foi servida, no entanto, ele começou um movimento excêntrico, esfregando carne, sopa e vinho pelo corpo. Quando questionado pela grosseria, Dante respondeu: “Sacra Majestade, reconheço que essa grande honra que me concedeste, concedeste-a às roupas; e assim eu quis que as roupas fruíssem os alimentos servidos”.

Você também pode gostar

Feira Sabor Nacional retoma edição presencial em março. Conheça os expositores

Pequenos produtores, praça de alimentação, oficinas e música