Lúpulo da (nossa) Morada

Lúpulo da (nossa) Morada

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Produzir lúpulo no Brasil ainda soa extraordinário, mesmo para pessoas que acumulam alguma quilometragem no mercado cervejeiro, no meu caso – poucos, mas, significativos – 15 anos dedicados às artesanais (comercialização, cultura, produção, difusão e cooperação). Com muita segurança se afirmou durante muito tempo, dos mais velhos aos mais novos apaixonados pela bebida, o mantra incontestável de que “lúpulo não dá no Brasil”.

Pra gente criada em ambiente urbano, longe da realidade do campo, em que parreiral sempre foi sinônimo de cultivo de uvas (e produção de vinho), e pellet lembrava ração de coelho, não havia hesitação em argumentar que o clima era bastante inapropriado e a exposição da planta ao sol era insuficiente para garantir o seu desenvolvimento em solo brasileiro, estávamos destinados a conviver com esta limitação, e absolutamente resignados a ela.

Mesmo em uma época mais intensa de viagens cervejeiras pelo mundo, quando eu integrava o grupo do Vila Dionísio, em São José do Rio Preto e Ribeirão Preto, (@viladionisioribeirao e @viladionisioriopreto), cuja proposta ainda explorava apenas a ponta de consumo do mercado, nunca visitei uma plantação de lúpulo. Os itinerários eram fartos de oportunidades, como Holanda, Bélgica, Alemanha, República Tcheca, Irlanda, Inglaterra e Escócia.

Em uma ou outra ocasião, foi possível testemunhar um lúpulo fresco em vias de ser adicionado a um mosto cervejeiro, ainda que sempre em ambiente predominantemente urbano – o Saaz na Budweiser Budvar foi inesquecível! Posteriormente, na condição de sócio da Cervejaria Weird Barrel (@weirdbarrel), em Ribeirão Preto, já envolvido com a produção da cerveja, o contato com o lúpulo aumentou, porém na condição de pellet – absolutamente conveniente para o processo produtivo, mas distante do frescor experimentado no campo. Nem um Craft Brewers Conference (CBC) nos Estados Unidos, país cuja contribuição para a valorização do lúpulo foi e tem sido significativa, me despertou o interesse em visitar uma propriedade agrícola, isso já em 2018.

Foi apenas ao assumir uma propriedade rural dos meus pais, situada em Nazaré Paulista, para ficar mais próximo da capital paulista, local de trabalho da minha esposa na ocasião, que o lúpulo se enraizou na minha vida, representando o ponto de partida do projeto DA MORADA (@da.morada). A propriedade de 1,8 hectares, que serviu de palco para muitas férias e feriados em família ao longo das décadas de 80 e 90, sempre esteve disponível para o lazer – a metragem equivale a um quintal doméstico bastante amplo, mas para justificar um projeto comercial sustentável, os produtos que comporiam o plantio necessitavam ser de alto valor agregado. Diante desse contexto, o lúpulo passou a ser fortemente considerado.

A informação mais confiável que me chegava em meados de 2018 a respeito do cultivo de lúpulo vinha da Serra da Mantiqueira, mais especificamente do engenheiro agrônomo Rodrigo Veraldi, em São Bento do Sapucaí, idealizador do Viveiro Frutopia e do restaurante Entre Vilas (@entrevilas) – essa variedade, a Mantiqueira, foi recentemente reconhecida pela International Hop Growers Convention (I.H.G.C.). Coincidentemente, alguns colegas de cervejarias de Ribeirão Preto já haviam visitado um produtor em Tuiuti, o João Carlos, cuja produção era de mudas obtidas do próprio Veraldi.

Em janeiro de 2019, aproveitando uma ida a São Paulo com a família, ao retornar, fiz uma visita na propriedade do João Carlos em Tuiuti, e adquiri 4 mudas do lúpulo da Mantiqueira. Com instruções básicas, ou melhor, simples, de plantio deixei as 4 mudas em Nazaré Paulista e orientações com o Vicente, caseiro do nosso espaço com experiência no trato da terra, para plantar os dois pares em lugares distintos da propriedade. Apenas duas delas vingaram (plantadas no mesmo lugar).

Com habilidade, intuição e paciência, o Vicente conseguiu multiplicar as mudas ao longo de quase um ano em quantidades suficientes para ocupar um espaço aproximado de 220 m² (o equivalente a 5 linhas de produção de 16 metros de extensão cada). Ainda em fevereiro de 2019, por sorte e coincidência, a II Semana Cervejeira da Química da USP de Ribeirão Preto promoveu uma palestra do Rodrigo Veraldi, intitulada “Lúpulo na Mantiqueira”, em que tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente.

Embora a decisão de se mudar de Ribeirão Preto para a Região Bragantina estivesse assegurada (Nazaré Paulista é parte integrante da Microrregião de Bragança Paulista), levaria um ano para que o deslocamento fosse efetivamente realizado. Sem muita expectativa e acompanhando o desenvolvimento das mudas à distância, uma estrutura de bambu foi erguida de forma improvisada, com altura estimada de 3 metros, 2 metros a menos do que o recomendado.

Compreendendo que os primeiros anos não seriam elegíveis para uma produção de lúpulo de qualidade (entenda-se por qualidade, um lúpulo com valor comercial), abracei a experimentação a fim de respeitar o tempo requerido para o aprendizado. Essas limitações conscientes impostas ao cultivo me permitiu que as melhorias fossem executadas mais vagarosamente, ao meu tempo, facilitando enxergar as consequências das decisões com mais clareza. Essa produção “na raça” talvez não seja o modelo mais adequado para quem mal começou e já está de olho no resultado, mas tem me auxiliado a considerar melhor a relação que estabeleci com a terra.

Essa postura, inclusive, tem sido adotada para todos os outros produtos e plantios encarados na propriedade.

Primeira adubação do lúpulo. Foto: Arquivo pessoal
Primeira adubação (09/03/2021). Foto: Arquivo pessoal

Quando nos mudamos efetivamente, antecedendo alguns meses o início da pandemia de COVID 19 no Brasil, o plantio já aniversariava e a necessidade de implementar novas práticas se fazia presente. As informações que foram cruciais para o meu amadurecimento como produtor vieram do livro “A Cultura do Lúpulo”, da Série Produtor Rural – nº 68, da Universidade de São Paulo – Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiróz” (download gratuito em https://www.esalq.usp.br/biblioteca/publicacoes-a-venda/serie-produtor-rural).

Uma postagem no Instagram do Entre Vilas (@entrevilas) em 2019 proporcionou o meu primeiro contato com o material, que tem o Rodrigo Veraldi como um dos autores. Como todo o material da Série Produtor Rural, o conteúdo é bastante denso, elaborado com base científica, e bem adaptado à realidade do nosso contexto (brasileiro) de produção.

Para um produtor cru como eu, carente de conteúdo agrícola, ele traz orientações relacionadas ao passo-a-passo do plantio e valorosas informações biológicas da planta, que aos poucos vamos incorporando ao nosso dia-a-dia. Pena que toda a dedicação oferecida ao longo de 2020 foi minada por uma chuva de granizo na virada para 2021 que dizimou toda a produção.

O famigerado risco da produção agrícola se fez presente logo no primeiro ciclo produtivo. O que teria sido a primeira colheita acabou sendo postergada para 2022.

Cobertura de composto de cogumelo. Arquivo pessoal
Cobertura de composto de cogumelo (23/07). Arquivo pessoal

 

Cobertura de composto de cogumelo II. Arquivo pessoal
Cobertura de composto de cogumelo II (23/07). Arquivo pessoal

Após um ano vivendo no campo, que coincidiu com o início da flexibilização das restrições relacionadas à COVID 19 em razão da vacinação, passei a explorar melhor o nosso entorno, me disponibilizando mais facilmente para fazer visitas e ser visitado.

Os relacionamentos foram se construindo e se desdobrando, no que passei a integrar alguns grupos específicos de WhatsApp regionais, de produtores rurais, turismo, alimentação, etc. Essa aproximação me proporcionou acesso a uma rica troca de informações e alguns projetos muito valiosos.

Essa rede de relacionamento me trouxe a lembrança do período em que participei ativamente do Polo Cervejeiro de Ribeirão Preto, tendo as parcerias com instituições comerciais e acadêmicas sido fortalecidas, legitimando e melhorando a qualidade do projeto coletivo.

Por aqui, mesmo em um contexto totalmente diverso, de escopo e propósito, o ímpeto para a construção das relações se fez presente: IPE (Instituto de Pesquisas Ecológicas) (@institutoipe), SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural) (@faesp_senarsp) e Casa de Agricultura (CATI) de Nazaré Paulista (@prefeituradenazarepaulista) contribuíram, por meio de conversas e orientações, para os meus avanços no trato da cultura.

No espaço reservado ao plantio do lúpulo foram feitas amostragens de solo para análise de macro e micro nutrientes nos dois primeiros anos, a fim de nos apresentar um diagnóstico da sua fertilidade, bem como da sua evolução (de um ano para o outro). Das 5 linhas produtivas estruturadas com bambu, 3 foram melhoradas (upgrade) com mourões de eucalipto, nos permitindo alcançar os 5 metros de altura exigidos para o cultivo.

Em 2021 fizemos a cobertura total da área com composto descartado de cogumelo (shimeji), antes do preparo da terra para o início da rebrota. O espaço até hoje ainda não conta com um sistema de irrigação, o que deve ser providenciado esse ano. Esse ritmo vagaroso que adotei tem como consequência (imediata) um efeito negativo na produtividade, muito embora o aprendizado que vai se acumulando sirva para melhorá-la.

Plantas crescendo. Foto: Arquivo pessoal
Plantas crescendo (18/01/2022). Foto: Arquivo pessoal

Mesmo com alguns cervejeiros interessados em adquirir o lúpulo DA MORADA este ano, optei por não submetê-lo a testes com cerveja uma vez que não me senti suficientemente confiante com o produto, tendo em vista minhas escolhas morosas de plantio. Porém, para os próximos anos a ideia é “cervejar o lúpulo”, como bem comentou nosso vizinho cervejeiro Tuca Paiva, da Cervejaria Rusticana (@rusticanacervejaria), numa troca de mensagens.

Um evento coletivo para festejar a colheita também está nos planos. Apesar das limitações práticas e estruturais, fizemos a colheita no dia 16/02/22 e conseguimos 2kg de cones de lúpulo fresco, submetidos diretamente à secagem, e destilamos por arraste à vapor as folhas junto com o ramo principal (caule), gerando uma grande porção de hidrolato e uma pequena quantidade de óleos essenciais.

Todo esse trabalho de pós-colheita foi feito com a ajuda laboral, expertise e maquinário da Tcher Spargiria (@tcherspargiria.cosmeticos) que “comprou” o projeto e entusiasmo. Os produtos devem seguir para análise laboratorial.

Dia de colheita de lúpulo. Foto: Arquivo pessoal
Dia de colheita de lúpulo (15/02/2022). Foto: Arquivo pessoal

O mercado nacional de lúpulo está amadurecendo e já há algum tempo deixou de ser apenas uma promessa. Tem muita gente boa e qualificada produzindo, prestando consultoria, estudando academicamente a planta, gerando dissertações de mestrado e teses de doutorado, o que tende só a melhorar a qualidade da informação e dos produtos extraídos do nosso solo. Embora sejamos iniciantes no cultivo de lúpulo aqui em nossa morada, eu e minha esposa, Valéria, estamos de portas abertas à visitação e troca de ideias, preparados para recebê-los com a nossa prosa e um pouco dos outros produtos que nos aventuramos em produzir: cogumelos (shimejis), meles de apis, hidroméis, vinagres, kombuchas, conservas e etc.

Da colheita 15/02/2022.

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