copos com cervejas ácidas belgasVigneronne Cantilon, Gueuze Tilguin & Gueuze Cantilon, tudo draft. No BAR Moeder Lambic Fontainas (Bélgica). Foto: Arquivo pessoal

Terroir soa muito estranho ao mundo da cerveja. É uma parada do vinho, da “finesse”, do sommelier do dedinho mindinho levantado, que todo chiquetoso, que com toda pompa, sabe dizer até de qual parcela do vinhedo a uva daquele vinho (no valor de um carro) saiu.

Não é isso que veio a sua cabeça? Se não veio na sua, te garanto que essa é a visão de muita gente.

No imaginário popular, essa palavra que já vem até com uma bandeirinha da França de brinde, se consolidou assim. Existe uma construção cultural desta visão, não à toa, foram milênios para estar do jeito que está. Desde a época da Antiga Grécia, do Egito, de Roma, havia o costume de se identificar de onde tal vinho vinha. E claro, alguns lugares eram melhores que outros, e os melhores, ficavam com a Realeza.

 

Terroir seria um pedigree de comida?

Assim continuou por muito tempo. A palavra terroir ficou ligada a imagem do vinho, da realeza, do luxo, e claro, denotava origem. O local, aliás, não significava apenas uma posição geográfica, significava qualidade e certos conceitos sensoriais intrínsecos aquela localidade. Mas não ficou apenas nisso.

O iluminismo e a Revolução Francesa transformaram o modo de pensar francês e “terroir” extrapolou os vinhedos e começou a ser usado em alimentos, bebidas e na gastronomia em geral como uma afirmação e resultado de uma tradição. O terroir, portanto, deixava de ser apenas uma conotação técnica, geográfica, para ser uma etiqueta de identidade cultural de certo produto. Natureza e humanidade construindo, um dependendo do outro, para existir em determinada localidade, e deixando claro que, fora desta posição geográfica, não poderia igual. Tão único que virava símbolo regional, nacional. Queijos de Camembert, espumantes de Champagne e tantas outras comilanças permearam da literatura dia a dia, consolidando a imagem como um país gastronômico.

E esse padrão de definição rompeu não apenas os limites dos parreirais, mas atravessou as fronteiras francesas também junto com o Iluminismo e a Revolução Francesa. Começou a ter uso em diferentes países e igualmente como na França, não se tratou apenas de vinho, terroir servia para frutas, queijos, e, sim, cerveja também.

 

Cervejas com terroir

Mas ok! Vamos com calma! O andor é de barro, e poucas cervejas hoje em dia podem ostentar que são cervejas com terroir. O caso mais emblemático são das Lambics. São cervejas espontâneas produzidas dentro das Regiões da Payottenland e do Vale do Rio Senne, ali pertinho de Bruxellas, na Bélgica.

barris de madeira na Cantillon
Cantillon, em Bruxelas.

 

 

Cervejas que assim são, por conta dos micro-organismos, insumos, metodologias de produção e temperaturas locais. Somente o somatório destes fatores, encontrados apenas ali é que levam a produção a ter o direito de ser nomeada de Lambic. Produzindo fora, não é. Não vai se produzir Lambic nos E.U.A., na França ou no Brasil.

Até podemos produzir uma cerveja espontânea com todos os mesmos passos de uma Lambic, mas os micro-organismos que fermentam, as temperaturas que fazem lá, e outros detalhes técnicos que não vale citar aqui, não serão os mesmo em lugar nenhum no mundo.

 

Fascinante, não?

O problema é que temos poucas cervejas que assim são. O mundo da cerveja vive de “estilos”, que resumidamente, são receitas de cerveja que são reproduzíveis em qualquer lugar do mundo. Basta ter conhecimento, a receita, equipamentos e insumos adequados para tanto. Muitas vezes são cervejas que já foram de terroir, mas acabaram pasteurizadas pela industrialização.

Tais quais as Lambics, muitas eram únicas e só resultavam com aquelas características sob o terroir local. Entretanto, o controle de temperatura de fermentadores, domesticação de leveduras, além da disponibilidade dos outros insumos necessários, tornou possível que tivessem seus domínios territoriais liquidados, possibilitando produção em qualquer lugar.

O resultado é a perda de sua ligação com o local original, com a cultura que a produzia. Quiçá, se a mesma cerveja descrita num estilo, for feita em seu lugar de origem, no período original do ano (para ter as temperaturas pedidas pelo estilo), com leveduras locais e sob toda tradição produtiva dali, é capaz desta não ser reconhecida como sendo de seu estilo. E vejam, não é bom ou ruim, é um fato. Perverso, mas é um fato.

Depressivo? Nem tudo está perdido. O movimento de cervejas selvagens está aí para o renascimento de cervejas com terroir. No Brasil e no Exterior se observa a consolidação deste ramo. Cervejas que exploram micro-organismos locais, fermentam em temperaturas locais, usam insumos locais, tem todas as credenciais para reivindicar este título. Inclusive, cervejas com terroir no Brasil foi tema de meu primeiro texto aqui na Farofa Magazine (link aqui)

A Chicha de Jora é um belo exemplo. Essa cerveja espontânea de milho maltado é testemunho da domesticação do milho e de seu papel na ocupação humana da América. Existem exemplos produzidos e consumidos diariamente em diferentes países americanos.

A diversidade de milhos é imensa, todas adaptadas em diferentes tipos de temperatura, altitude pelas populações ancestrais.  Para cada região, milhos próprios, maltes de milhos próprios, Chichas próprias. O milho é o verdadeiro cereal para o malte americano, e é pedra fundamental deste estilo de cerveja selvagem produzida aqui na América do Sul. Cereal esse que infelizmente é hoje erroneamente relegado no mundo cervejeiro ao status de adjunto. Isso quando não vira piada para conotar que não é uma cerveja de qualidade.

Figura 1 – Milhos foram adaptados por populações andinas originais ao decorrer de milhares de anos, dando origem a diferentes milhos. Isso também ocorreu no Brasil.

Curioso que para o Brasil, tão carente e ávido de identidade nacional em sua produção cervejeira, bem na nossa cara tem esse caminho, mas ignoramos. Temos milhos locais para uma penca de estilos novos e próprios. Sem contar com outros caminhos como toda a cultura em torno do Cauim, o fermentado de mandioca ou tantas frutas e adjuntos de diferentes naturezas para abordar.

Há também excepcionais e válidos esforços para se produzir cevada nacional, lúpulo nacional, mas convenhamos, temos vias muito mais fáceis. Já existem milhos brasileiros aos montes, leveduras e outros micro-organismos nacionais, sem falar em diversas frutas e adjuntos que só existem por aqui que poderiam ser, se somados, os pilares deste desejo que está no coração de todo cervejeiro.

Mas uma pausa para um tapa bem dado na nossa cara aqui (me incluo no tapa também): a gente precisa descolonizar a forma de pensar como fazer cerveja. E isso é um exercício constante de autocrítica.

Encho a paciência dos cervejeiros quando dou palestra e incito fazer cerveja “Sem Regra”. Falo isso no intuito de esquecer os padrões dos estilos existentes para escrever obras realmente inovadoras e originais, ou buscar adaptações de conhecimentos já pré-existentes, mas que sejam locais. Fuçar na nossa história, na nossa cultura para encontrar as sementes de cervejas legitimamente nacionais e o trabalho de cervejeiros também.

E nada contra adaptar cevada ou lúpulo, nacionalizar ambos. Mas é trabalhoso, e apesar de temos tecnologia e conhecimento pra fazer (Brasil é potência agrícola mundial), porém, entretanto, todavia… É o mais importante?

Em minha visão, para alcançar uma Escola Brasileira, tem sim sua importância, mas não deveria ser o mais importante. Julgo que damos importância demais a aspectos que são importantes para europeus e norte-americanos e esquecemos do mais importante, de olhar para o que é realmente nosso, local e endêmico.

 

A gente deveria se perguntar toda hora: Quem somos? E responder isso através de cada garrafa.

O buraco é mais embaixo, como disse Kátia Zanatta em um episódio do podcast Surra de Lúpulo (ouça aqui). Não basta jogar uma fruta que vai se chamar de cerveja brasileira. Assim não será com cevada nacional, com lúpulo nacional. Somam, mas não completam o quadro. A paisagem a ser composta é mais complexa.

Precisamos imprimir história e cultura local na nossa produção, e cervejas com terroir é um caminho exploratório dos sabores brasileiros. Experiências sensoriais/culturais tem aos montes espalhadas por esse país de dimensões continentais, onde até mesmo resumir um suposto estilo nacional sob o nome de “BraZilian Alguma Coisa” é sempre um tiro no pé.

O “Brasilzão da Massa” é muito grande para que um estilo represente todos os sabores brasileiros. Existem vários “Brasius” dentro deste território, um universo de culturas, identidades, que podem dar nascimento a diferentes estilos nacionais. Mas antes temos que descobri-los, explorá-los, as cervejas com terroir podem ser este caminho. Ou pelo menos, um dos caminhos que precisamos trilhar para estabelecer a tão desejada Escola Brasileira.

 

Ficou curioso sobre os milhos? Sobre Chicha? Como isso tudo está ligado a própria dispersão humana aqui em nosso continente? Segue algumas dicas de leitura: Uma visão geral sobre os milhos andinos aqui. A origem e domesticação do Milho e sua ligação com a ocupação humana aqui, aqui  e aqui também . Uma visão geral dos microorganismos na produção de Chicha no Peru aqui e aqui.

 

Fonte da Figura 01: Rebeca Salvador-Reyes, Maria Teresa Pedrosa Silva Clerici, Peruvian Andean maize: General characteristics, nutritional properties, bioactive compounds, and culinary uses - Food Research International - Volume 130 – 2020

 

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