Tempo, um ingrediente fundamental

Tempo, um ingrediente fundamental

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Joseph Bail (français, 1862 - 1921) ‘’Cuisiniers et marmitons’’ daté 1883

É importante ampliar os temas em discussão no âmbito da gastronomia e evidenciar que ela não se limita aos restaurantes e chefs renomados, que não deixam de merecer o devido reconhecimento. A gastronomia extrapola muitas fronteiras que a ela atribuem e cabe aos que discutem este tema manifestar a perspectiva de que esta ciência é muito relevante para a construção da nossa realidade, visto que ela colabora para criar e delimitar diferentes formas de vida, vice-versa. Esta ciência é, portanto, holística, grandiosa e sublime.

Ao observar o caráter transversal da matéria gastronômica, me dediquei a pensar sobre a sua relação com o tempo, tema que encaro com semelhante deslumbramento. Sobre ele, o tempo, procuro com frequência relembrar que não há como controlá-lo. Cogito que o humano, pretensioso como é, tende a acreditar que tudo e todos devem adaptar-se ao seu tempo, enquanto o ideal era que houvesse sinergia, coesão.

Tal qual a gastronomia, o tempo não dispõe de uma só definição, não assume uma só forma, pois é composto por múltiplas concepções, abstrações e signos. Experimentamos ambos, o tempo e a gastronomia, a partir das mudanças, dos sentidos, das emoções, cada um à sua maneira. Entretanto, acredito que o estilo de vida e o modelo de consumo característicos do capitalismo industrial prejudicam a construção de uma relação saudável com o tempo.

Neste contexto, a compreensão que se tem do tempo é a de um percurso para o futuro, portanto estamos habituados a viver planejando o depois. Talvez esta grande ansiedade que vivemos seja fruto desta tentativa de antecipar os acontecimentos, de controlar as mudanças que caracterizam o tempo.

Ailton Krenak, em “O Amanhã não está à venda”, diz acreditar que a pandemia vivida recentemente foi uma forma de a Natureza nos alertar de que precisamos desacelerar, de modo que nos vimos obrigados a fazer isto. Concordo, mas me parece que a força do hábito e dos interesses econômicos, alheios a nós, nos puxou de volta muito rapidamente.

Em meio a esta constante disputa contra um tempo que tenta me devorar e que não é meu, vejo a gastronomia e o ato de cozinhar como uma forma de me conectar com o presente. Mas esta conexão não é tão fácil ou natural quanto possa parecer, porque até no momento mais íntimo, na cozinha de casa, em que parece ser possível contemplar as coisas se transformando, no seu tempo, a urgência da vida cronometrada me invade.

Na cozinha doméstica não é incomum o recurso a utensílios que nos desconectam do fazer e que de certa forma aceleram o tempo de preparação de uma refeição. Vejo que atualmente existem eletrodomésticos que fazem quase o trabalho todo, basta adicionar lá dentro os ingredientes – que muitas vezes já vêm descascados e cortados na embalagem do mercado, tudo para poupar tempo.

O tempo, neste caso, é como o dinheiro, buscamos sempre poupá-lo mas sequer sabemos para que finalidade e acabamos por o utilizar em algo que não é fruto da nossa própria escolha.

Le Petit mitron, musée d'Évreux. Joseph Bail
Joseph Bail. “Le Petit mitron”, musée d’Évreux.

Na cozinha profissional, a relação com o tempo assume outras facetas, pois a necessidade de produtividade imposta pelo mercado e pelo modo de vida industrial capitalista leva os que se submetem a esta lógica – alguns por ideologia, outros por resignação – à buscarem a rapidez. Consequentemente, eficiência, agilidade e pressão passam a compor a realidade do profissional da gastronomia, o que leva muitos a acreditarem que a sua função implica necessariamente no esgotamento, no estresse e em longas jornadas de trabalho.

Creio que esta forma de trabalho adotada em grande parte das cozinhas profissionais, principalmente ocidentais, têm uma forte influência da organização do trabalho da cozinha em brigadas, proposta pelo chef francês Auguste Escoffier, que buscou referência nas organizações militares européias. Entretanto, este modelo de trabalho pressupõe uma rigorosa estruturação hierárquica dos colaboradores e sabemos que esta não é a realidade da maior parte das cozinhas profissionais, em que um elemento acaba por acumular diversas funções e o trabalho proposto torna-se inexequível e insalubre.

Alguns disputam com vaidade quem trabalha por mais horas em um dia. Sobre isto, lhes pergunto “Quem trabalha mais, ganha o que?”. Acabo por chegar sempre na mesma conclusão, a de que não me interessa, tendo em conta que se perde todo o resto.

Também não me agrada a postura de encarar esta realidade como se não houvesse escolha e aceitar esta forma de trabalho como uma fatalidade que recai sobre nós. Esta é uma realidade construída em conjunto e da mesma forma que a suportamos, podemos a transformar, mas para isso é preciso disposição para se desvincular da superficialidade, da ganância, da fama e do “sucesso”, para conseguir visualizar outros caminhos.

Não tenho medo de perder o tempo, pois ele já está perdido. Nossa sociedade cria ausências, ao mesmo tempo em que desenvolve em nós a necessidade de cada vez mais, é injusto, a conta não fecha. Buscamos recursos para poupar tempo, mas não o queremos “gastar”.

O tempo é como a cadência da música da vida, nos resta acompanhar e apreciar.

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