Carta brasileira e líquida

Carta brasileira e líquida

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Foto Pedro Ferrarezzi Arte: Bia Amorim

Muitas vezes não reparamos nas entrelinhas saborosas que rodeiam a escolha de uma bebida. Existe aquilo que gostamos pelo sabor e que são tradições e também o que são as novidades desconhecidas.

Que sabor tem as bebidas no e do Brasil? Qual a importância de consumir os líquidos aqui fermentados, com ingredientes locais ou com técnicas idealizadas aqui? Muitas dessas perguntas me atravessam constantemente. Ainda mais por ser parte da minha profissão, mas também porque sou consumidora e acima de tudo, brasileira. De forma não implícita muitas vezes estas discussões que acontecem estão apenas nos backstages do mundo profissional.

Este é um tema que durante os últimos anos refleti bastante e atualmente, à frente de uma operação de bar em São Paulo, abri ainda mais os sentidos, os ouvidos e as papilas. Como podemos fazer parte da construção e continuação do que já foi feito por essas terras e terroir?

Nem sempre a resposta está em criar algo novo e sim dar suporte ao que vem sendo feito. Colocar nas cartas, oferecer e servir. Apresentar ao público.

Observe as pessoas, os movimentos culturais e o impacto das novas tecnologias. Eles serão os condutores da mudança.” Aline Silva

 

Brasil derramando seu líquido

O episódio mais recente desta novela é que o coquetel Rabo de Galo enfim virou um ícone brasileiro na IBA (International Bartenders Association) e Juliana Simon escreveu sobre isso na sua coluna no Uol Nossa “Yes, we love cachaça: Rabo de Galo conquista lugar em Olimpo de clássicos”. Para além da caipirinha, estamos fazendo fronteira com grandes nomes da coquetelaria internacional.

O Rabo de Galo e também o Macunaíma entraram na carta de coquetéis para fazer essa demarcação importante de sabores, mas principalmente de cultura nacional. E ver que os clientes escolhem essas bebidas sempre me alegra.

 

Terroir e não terror

Pedro Marques falou sobre a cachaça em “Marvada, que nada” e sobre a importante questão que é a valorização dos nossos ingredientes, sem cair na velha questão vira-lata da cachaça não ser um destilado tão bom quanto vodka, gin, etc. Temos marcas e marcas, preços e valores diferentes para tudo, e a qualidade não deve ser julgada de forma generalizada.

Aqui no bar escolhi oito rótulos para coquetéis e também doses. Alzira, Jambu Meu Garoto, Leandro Batista (amburana, balsamo, canela e sassafrás), Mato Dentro (bálsamo), Sanhaçu (carvalho), Vale Verde (carvalho), Tiê Prata e Weber Haus (7 madeiras).

 

Cervejas

Dentro destes símbolos também está a cerveja. Para Eduardo Marcusso, doutor em Geografia e sommelier,  a cerveja tem um papel bastante amplo e vale muito ouvir ele falar sobre o “Impacto da cerveja com a cultura e o chamado território da cerveja”. Para Diego Simão, da cervejaria de Florianópolis Cozalinda, a cerveja nacional precisa ser debatida e ele defende com vários textos o assunto aqui na Farofa, como neste artigo “A Escola Brasileira pode surgir através das cervejas com terroir?”.

Por isso sirvo no Lepos as cervejas da Tarantino, rótulos com muito frescor e as latas mais locais possível. Também na carta temos a Ruera (cigana), Dádiva (sem álcool e sem glúten de Várzea Paulista), Cozalinda (com as leveduras manezinhas (Florianópolis) e toda a conversa que Diego traz para a mesa), Fermentaria Local (com sua equilibrada Corte n3) e mais recentemente um pequeno lote de Juicy IPA da Mbeer (e os meles nativos que dão uma arte ao conjunto).

 

Cervejas da carta do Lepos. Foto Pedro Ferrarezzi

Vinhos

No vinho há também essa busca vernácula. Encontrei um artigo bastante interessante e com ótimos dados: “Vinho brasileiro: os desafios da produção nacional em busca da excelência”. Também vale a leitura do artigo “Cultura, patrimônio e territórios do vinho”, de Rosa Maria Vieira Medeiros [1]. Na vanguarda dos vinhos, a vinícola nacional Era dos Ventos me chamou a atenção com sua forma contemporânea de abordar e vinificar o assunto.

Os espumantes brasileiros já estão em conversas sobre qualidade e disputa neste mercado acirrado faz tempo. Aqui na carta do bar o Espumante e o Laranja da Era dos Ventos, inclusive em taça, para paladares curiosos poderem provar e tomar suas decisões sobre o assunto. Ainda temos o espumante Vitoria Geisse, e o Casa Valduga 130, fincando a bandeirinha em páginas tão internacionais.

 

Fermentados e destilados

O Brasil nos últimos anos aumentou sua produção de outros destilados que não só a cachaça e por isso a lista de vodka, gins, absinto e até uísques e afins cresceu muito e fico impressionada que a cada ano a lista inclui novos nomes e categorias. Claro que os licores já fazem parte do artesanal caseiro há muito tempo, mas da perspectiva profissional e concorrência com grandes marcas, tudo ainda me parece muito novo.

Escolhi o gin da Geest, o Rusty, para o papel principal de alguns dos coquetéis que fazemos, como o caso do Fitzgerald, queridinho do momento e também o Bramble.

O pessoal da Cia dos Fermentados vem fazendo/fermentando, já faz alguns anos, um trabalho extraordinário com fermentados que tem uma raiz bem nacional, trazendo sabores inesperados e muita criatividade e vontade (aqui, aqui e aqui). No bar temos dois Vermutes (o Vermú e o Baco de férias), além do molho inglês vegano que usamos para temperar o Bloody Mary e ainda pretendemos ampliar essa presença.

 

Diferentes momentos, paladares

Não quero fazer com que ninguém pare de beber de outras fontes. Eu também amo os clássicos e adoro viajar com a gastronomia. Mas é sobre darmos uma chance e mais espaço para o que vem sendo feito aqui. É ajudar a criar as referências para a história, nosso patrimônio como algo de valor, também nas bebidas, com orgulho em sermos brasileiros.

 

O papel do servir

Tempos atrás escrevi o texto “O Brasil me obrigada a ser sommelier”, em uma fase que muito se falava sobre sermos brasileiros e o consumo de bebidas, intrínseco aos dramas da vida. Daí li o texto da Néli Pereira que escreveu na sua coluna na Vogue “O brasil não te obriga a beber” e também o texto “Fica decretado o brinde ao que é nosso”. São duas referências, entre tantos textos que nos defendem em copos. Mesmo que do próprio copo, como no primeiro texto da Néli que fala sobre o consumo de bebida no país.

O portal Mixology News faz um trabalho estupendo com a coquetelaria brasileira e tem em seu site uma área com 365 drinques do Brasil que vale a pena ser acessada. Se não mostrarmos o caminho, fica difícil encontrar Oz.

 

Saindo da bolha

Muita gente tem conversado, escrito e falado sobre o assunto, mas não é o suficiente ainda. Somos uma grande nação e precisamos de mais gente pensando, servindo, escrevendo e também debatendo um tópico que faz parte desta conversa toda: descolonizar o paladar. Ler a Adriane Primo em “DHUZATI: descolonizando o paladar para garantir autonomia alimentar” leva essa conversa para um ambiente muito mais profundo e maduro, ela faz uma entrevista com a ativista Monstra Animalista, saindo um poucodo assunto da área de bebidas e mergulhando em outros aspectos desta conversa.

Gosto também de como Elaine de Azevedo no Panela de Impressão tem um episódio que vai trazer este assunto à tona em Comida e colonialidade. E poderia citar outros personagens que fazem essa conversa acontecer, mas sempre vai faltar trazer referências e fica para um outro texto.

 

Servir bem para servir sempre

Com saúde, moderação e intuição, vamos longe. Espero que nos próximos anos a gente possa debater mais sobre esse assunto que envolve tantas esferas e não apenas os balcões, copos e geladeiras.

 

Espero todos vocês no Lepos Bar, que fica na Rua Vicente Leporace, 1078 Campo Belo, em São Paulo.

 

#ApreciecomModeração #AprecieoBrasil #Sebebernãodirija

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