Todo mundo já ouviu o termo “cultura cervejeira”. Mas será que todo mundo sabe o que isso significa de fato? 

Cultura não é um conceito de fácil definição. E pode se referir tanto ao acesso à educação formal e sua transmissão, à produção artística e à língua de um determinado grupos social; quanto ao seu conjunto de crenças, valores, hábitos, ritos, mitos e instituições. Esses são elementos que dão coesão e identidade a esse grupo.

Não há dúvidas de que a cerveja é um importante elemento cultural de diversas sociedades onde a sua produção e consumo estão disseminados há mais ou menos tempo. Os hábitos alimentares de um povo são uma expressão da sua cultura enquanto elemento que contribui para a construção de uma identidade coletiva, atuando como elemento de conexão entre as pessoas, criando comportamentos e hábitos passados de geração a geração. E a cerveja, enquanto parte dos hábitos alimentares de um povo, é também parte da sua cultura.

É importante não esquecer de que cerveja é gastronomia

E o fato disso não parecer evidente à primeira vista (a ponto de termos que reafirmá-lo), é uma característica da nossa cultura cervejeira. Mas, estou me adiantando. 

Algumas grandes cervejarias têm implementado setores de cultura e educação cervejeira. Na maioria das vezes esse setor não faz mais do que apresentar as cervejas da empresa para o público consumidor ou para os pontos de venda, explicando as características de cada produto e as diferenças entre eles. Ainda assim, de algum modo essas empresas estão educando o seu público e contribuindo para a construção do conhecimento sobre cerveja. Sem dúvida é uma ação necessária e, até mesmo, um avanço em relação a tempos passados não muito distantes.

Mas, ao final, as ações promovidas por esses setores estão submetidas ao imperativo das vendas. Estando vinculados ao setor comercial ou de comunicação institucional. Se, no meio do caminho, for possível gerar algum conhecimento, tanto melhor. Mas não é esse o seu objetivo principal. 

Além do conhecimento: cultura cervejeira é conexão

Uma cultura cervejeira vai além do conhecimento sobre estilos de cerveja ou sobre as suas técnicas produtivas e degustativas. A partir de um ponto de vista antropológico, ela pode ser entendida como a relação estabelecida entre os produtores / consumidores e a bebida em um determinado contexto histórico e geopolítico.

Essa relação inclui não só as dimensões da produção (o que e como se produz), comercialização (onde e como se comercializa) e consumo (ocasiões e quantidade de consumo), mas também a atribuição de significados simbólicos para cada uma dessas dimensões. Ela é histórica (quer dizer, construída ao longo do tempo) e geopoliticamente localizada porque ela muda de país para país, assim como em um mesmo país em diferentes momentos.

Não há dúvidas de que a cultura cervejeira belga é diferente da cultura cervejeira alemã, por exemplo. Assim como a cultura cervejeira norte-americana de meados do século XIX era diferente da cultura cervejeira norte-americana de meados do século XX, pós-Lei Seca (1920-1933).

Na minha coluna anterior, abordei como a UNESCO incluiu a cultura cervejeira belga na lista de Patrimônios Culturais Imateriais da Humanidade. Ressaltando a presença e a importância da cerveja na vida cotidiana das comunidades belgas, seja como forma de lazer, seja como trabalho e fonte de renda, seja como ingrediente culinário. Presença consolidada ao longo do tempo e que torna inseparáveis a história da cerveja na Bélgica e a própria história cultural daquele país.

Cerveja conta a história de uma sociedade

Se você já fez algum curso de degustação de cerveja, deve ter ouvido falar em “harmonizações culturais”. Uma harmonização que não se baseia necessariamente em princípios como semelhança, contraste ou equilíbrio de forças, mas sim nos usos e costumes de um determinado povo. Harmonizações que, muitas vezes, vão mesmo contra aqueles princípios. Como, por exemplo, a harmonização de cervejas de trigo com salsichão branco, na cultura bávara. Ou de ostras e dry stout, na cultura irlandesa. 

Mas então, o que caracteriza a cultura cervejeira brasileira? Um país onde a produção e o consumo de cerveja estão disseminados entre a população há muito menos tempo do que na Alemanha ou na Bélgica. A primeira característica, que eu considero a mais significativa, é aquela que se refere as ocasiões de consumo.

Na relação que consumidores brasileiros estabeleceram com a cerveja, a bebida ficou associada a momentos de lazer, diversão e confraternização. Momentos que escapam à rotina cotidiana.

Um trabalhador brasileiro não pensaria em beber um copo de cerveja no seu intervalo de almoço durante a semana. Um trabalhador alemão o faz sem nenhum peso na consciência. Assim como um italiano bebe um cálice de vinho.

Cultura x beber até fechar o bar

É justamente essa característica que nos impede de enxergar a cerveja como alimento (como afirmei antes) ou como uma “bebida de mesa”. A explicação para isso pode ser encontrada na forma como os cervejeiros encontraram para disseminar o consumo da bebida ainda no século XIX, frente à concorrência de bebidas já enraizadas no cotidiano da população local, como o vinho e a cachaça. Sempre associando-a a outras formas de entretenimento. Seja ao circo, ao teatro ou, mais recentemente (no começo do século XX) ao futebol e ao carnaval. 

Essa primeira característica influencia a segunda: a sua forma de consumo. Uma vez que o seu consumo se faz, prioritariamente, em momentos de fuga da rotina, a cerveja é bebida sempre em grandes quantidades a cada sessão. Muitas vezes, chegar à embriaguez parece ser não uma consequência, mas um objetivo. Uma ida ao bar, não tem hora para terminar.

Quem nunca “fechou um engradado” de cerveja no bar com os amigos que atire a primeira pedra. O lema da cerveja artesanal, “beba menos, beba melhor”, vem se contrapor justamente à essa característica da nossa relação com a cerveja. 

O fator bebabilidade

A terceira, e última, característica tem relação com as duas anteriores. Me refiro aos estilos preferidos pelos consumidores: cervejas leves, claras, pouco alcóolicas e pouco amargas. As nossas conhecidas American Lagers. Cervejas que permitem que se beba em grandes quantidades e que agradam a um maior número de pessoas. Ou, como dizemos, cervejas de alta bebabilidade.

Nesse caso há um outro aspecto importante a ser considerado: o aspecto econômico. O  público consumidor busca a cerveja mais barata, para que possa consumir mais. E a industria cervejeira investe nas cervejas de produção mais barata. Atendendo ao gosto do público, vendendo mais e, assim, maximizando o seu lucro. 

Dessa forma, a nossa cultura cervejeira está longe de ser um dado natural. Em um país onde o desenvolvimento da indústria cervejeira é relativamente recente (se compararmos com a Alemanha ou a Bélgica), essa cultura  não encontra suas origens  na nossa trajetória histórica ligada ao consumo de bebidas alcóolicas. Ou não apenas. Ela foi construída, em grande parte, por interesses dessa mesma indústria.

Podemos afirmar, dessa forma, que a industria cervejeira moldou o gosto do público às suas necessidades. Determinando, ainda lá nos seus primórdios, as ocasiões para se beber cerveja. Ou, ao longo do século XX, os estilos mais consumidos.

O nosso toque pessoal, nesse amplo sistema que é a nossa cultura cervejeira, fica por conta do volume consumido. Talvez influenciado pelo clima ou por nosso caráter festivo. Esse sim, um traço cultural original, mas do qual a industria cervejeira prontamente se apropriou e impulsionou. 

 

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