5 Atos Sommelieria – Uma harmonização e performance na laje do Lobozó

5 Atos Sommelieria – Uma harmonização e performance na laje do Lobozó

- em Artigos, Empreender

Paladar é situação, circunstância, experiência, relação estética.

Nicola Perullo

 

Quando a editora Krater estava desenhando o projeto do crowdfunding do livro Guia da Sommelieria de Cervejas que foi lançado em agosto de 2021, surgiu a ideia de ter como recompensa um evento de harmonização assinado por dois sommeliers autores do livro. Então convidamos Jayro P. Neto para participar da produção e serviço comigo neste evento.

No mês seguinte, o crowdfunding já tinha batido as metas e os ingressos estavam vendidos, mas a pandemia ainda não tinha dado sinais claros que iria desacelerar e por isso as nossas decisões sobre o evento estavam apenas em nuvens e sonhos. Em setembro, começamos a fazer o brainstorm, falamos de comida, cerveja, música, guitarra, composições e o Jayro já falava em performance.

Le temps ne respecte pas ce qui se fait sans lui” Paul Morand

* o tempo não respeita o que se faz sem ele

Engraçado olhar as conversas e ver que no dia 9 de setembro ele me perguntou “você tem algum livro do Carlos Alberto Dória?” e eu toda feliz “acho que quase todos”. Na época nem havia passado por nossas cabeças de que o evento, no futuro, seria em “um livro do Dória”.

Alguns dias depois as “cenas” tinham sido desenhadas, a proposta era de que em cada ato, a gente provocasse uma “proposta de jornada multissensorial pelas etapas do processo de degustação de uma cerveja.”

Já em dezembro fiz uma postagem em meu Facebook pedindo sugestão de locais em São Paulo que comportassem até 15 pessoas para um evento de degustação de cervejas. Recebi muitas indicações legais, lugares que nem sempre estão como primeiros da lista, aqueles as vezes meio escondidos, particulares, desconhecidos. Começamos a fazer orçamentos.

Ora e não é que recebo uma mensagem do Dória? Era com uma foto do Lobozó, a laje simpática, aberta e arejada que coube feito uma luva em nosso projeto. Além de bem localizado, na Vila Madalena, o lugar tem um conceito de cardápio que se encaixou bem em nosso desenho de evento que queria privilegiar as cervejas brasileiras e o cardápio caipira casou com o artesanal.

O restaurante é fruto do livro “A culinária caipira da Paulistânia: a história e as receitas de um modo antigo de comer.” Escrito pelo Carlos Alberto Dória e o chef Marcelo Corrêa Bastos, lançado em 2018 pela editora Três Estrelas, o livro estava esgotado e foi relançado pela editora Fósforo em 2021 (aqui, aqui).

Lobozó, cozinha aberta. Foto: Camila Sugai
Lobozó, cozinha aberta. Fotos: Camila Sugai

Com o cardápio do restaurante em mãos e mentes, começamos a pensar nas cervejas, enquanto o Jayro pedia o cardápio do Lobozó para provar e degustar várias das opções que seriam servidas no evento. Um estilo que sabíamos que seria servido era o Saison, um ícone gastronômico de bons casamentos.

Primeiro cardápio de 5 pratos escolhido, pensamos as cervejas. Mas não foi definitivo e conversamos mais um pouco Jayro provou mais um pouco e mudamos para uma nova sugestão de menu. A única coisa que não saiu do pensamento foi realmente a sobremesa que seria servida, o pudim.

Grupo do whats formado, Krater + Sommeliers, começamos então a realmente dar forma ao evento, falar sobre a comunicação com os comensais, saber se haveriam restrições alimentares e outros detalhes quase imperceptíveis que são sempre tão importantes.

No dia 21 de fevereiro, quase um mês antes do evento, já começamos a nos preocupar com o fator “chuva” e as águas de março que fecham o verão. Enquanto isso, a performance estava sendo ensaiada, o tecido costurado e as luzes e sombras testadas. Os prints de previsão do tempo, a cada semana estavam nas conversas do grupo, junto com a ansiedade e animação da data enfim estar mais próxima.

Taças ISO alugadas, guardanapo de linho, mesas, cadeiras e toalhas. O que é necessário para um banquete? Liga pra Babette!

Lá estávamos nós, dez da manhã do fatídico 19/03/2022. Eu estava estudando a tabela de atos que Jayro organizou no Excel. Passar pelos 5 atos, com 5 cervejas, 5 pratos e diferentes combinações, foi um exercício construído, pensando em como agradar as pessoas que iriam ter uma relação estética com o projeto.

 

O paladar como experiência completa

Depois que você lê O gosto como experiência: ensaio sobre filosofia e estética do alimento, do Nicola Perullo, você se transforma. Ter lido este livro em 2020, depois de indicado pela Carol Oda em uma aula que ela ministrou, me tornou uma grande defensora da reflexão que faz Perullo em seus acessos.

A vontade do fenômeno ser cultural, biológico, individual e coletivo. Como cita Massimo Montanari no prefácio “efêmero (pois se exaure no comer) e durável (pois se refere a valores socialmente compartilhados)”.

A entrada dramática e suas sensações. Foto Camila Sugai

 

Não revelação das cervejas

Hoje no Brasil há tantas boas cervejarias, tantas cervejas frescas, premiadas, bem executadas. Eram 5 cervejas, 5 estilos, 5 pratos, 5 atos. Mas ao meio dia do grande dia, uma sexta cerveja surgiu, da vontade incontrolável que temos de satisfazer, fechar em grande estilo, aquilo que já era tão bem lapidado.

Estava ajustando as cervejas que tiramos da geladeira do restaurante e organizando no cooler vermelho antigo que estava cheio de gelo. Veio então Jayro perguntando “vamos não revelar os rótulos?”. Já tinha sido um mistério até aquele momento, nenhum dos participantes tinha recebido o cardápio.

Dentre o uso dos sentidos, o visual é muito mais do que um rótulo bonito. Carrega informação, marca, influência. Não revelar qual a cerveja torna a experiência de combinação entre a comida e a bebida mais desnuda, intrigante.

 

O capítulo Serviço

Se este foi um evento de fechamento do projeto de um livro de sommelieria, é claro que o tema que será desfiado por aqui é esse, a Sommelieria.  No Guia da Sommelieria de Cervejas, o capítulo número 13 é sobre contexto, maneirismo e prática, escrito pelo sommelier da noite, Jayro.

Como Jayro escreveu seu capítulo e desenhou o evento?

“(…) vivências que pudessem me auxiliar na identificação e mapeamento de aspectos subjetivos do serviço, que, intuitivamente, sempre considerei como importantes.” Jayro P. Neto.

O serviço de pratos foi o Empratado ou Pre-plated, cada pessoa recebe seu prato, individual.

“Assim, entre os lugares do cotidiano e os lugares do extravagante, há um conjunto amplo de outros lugares, cujas variáveis incidem diretamente sobre o serviço e que, no entanto, nem sempre são incorporadas por uma ótica potencial.”

Vivenciar esse serviço, estar em pele e suor, movimento, exageros e caprichos para agradar ao cliente, é parte do evento. Depois que o serviço começa, ele só termina quando acaba mesmo. É do frio na barriga ao inchaço dos tornozelos, do sorriso da recepção e chegada aos abraços e sorrisos da saída.

“O paladar, enquanto relação, também é compartilhamento, socialização, negociação.”

Nicola Perullo

Juntando conhecimento, vontade e paixão pela cerveja os diferentes propósitos do que porque estamos ali, em um sábado a noite, carregando a bandeja, lustrando a taça, explicando as combinações. Fluímos bem como time de sala e tivemos a sorte de ter a Gaby Lando, editora da Krater e que fez a edição junto com Pedro Paranhos, do Guia.

Ainda junto de nós, toda a equipe do restaurante, que como um relógio entregou os pratos cerveja a cerveja. Quantas pessoas são necessárias para um evento como este acontecer? No serviço direto e indireto, muito mais do que o número de pessoas que estão sentadas à mesa.

 

Cardápio de comidas

Dedicado à culinária caipira da Paulistânia, a região da antiga Capitania de São Paulo, que se estende a Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná, os pratos fartos e impregnados de sabor que saem da cozinha contam uma história. No Lobozó o chef Gustavo Rodrigues é quem comanda a equipe.

A culinária caipira é a forma de alimentação que resulta da reiteração dessas práticas agrícolas, capazes de nivelar todo mundo na hora de comer, nesse longo percurso que começa nos primórdios do século 16, na capitania de São Vicente, e avança até o início do século 19.”

Carlos Alberto Dória e Marcelo Corrêa Bastos

Buscando toda essa Identidade cultural, escolhemos os seguintes pratos para o jantar:

Do balcão de frios:

  1. Escabeche de peixe do dia + cebola, tomate, pimentão e alho doce
  2. Língua defumada, servida com picles e mostarda Djon

Da cozinha quente:

  1. Frango caipira Frito servido com maionese de pequi e molho de tamarindo
  2. Rolê de porco assado servido com quibebe de abóbora

A Sobremesa:

  1. Pudim de doce de leite Viçosa e calda de café Lobozó

Vegetarianos à mesa

Duas pessoas escolheram o cardápio vegetariano, e não faltavam boas opções, a questão em si é sempre fazer a combinação funcionar, em boca.

– Pasta de Jiló, amendoim e queijo bursin

– Verdura na brasa com molho de amendoim

– Polenta Frita com páprica

– Cuscuz paulista de vegetais

 

 

As cervejas da noite, as estrelas do paladar

Encontro de uma comida ou bebida e de quem sabe aprecia-lo.

Amélie Nothomb

Com o cardápio acertado as cervejas também tomaram forma. A combinação se faz na teoria e também no palato, mas é só mesmo individualmente que a assertividade se faz verdadeira. Como é difícil a escolha das cervejas.

Sem mais mistérios, depois de servida a quinta cerveja, todas as garrafas e latas vieram à mesa, enquanto ainda haveria tempo e vontade para um último brinde.

  1. Berliner Weisse com pêssego, abacaxi e manga 4,4%. Cervejaria Dádiva
  2. Projeto Biota – Da flor de lírio 5,9%. Cervejaria Zalaz
  3. West Coast IPA – Chinook, Centennial, Mosaic e Cascade 7%. El Cabuloso Resgate de Ned Gonzáles. Cervejaria Juan Caloto
  4. Rauchweizen doppelbock 7,7%. Cervejaria Alenda Bier
  5. Baltic Porter – Base 8,4%. Cervejaria Avós
  6. Wild Italian Grape Ale Cabernet Sauvignon 7,8%. Cosabella Fermentações
Da geladeira onde estavam aguardando, para o cooler vintage cheio de gelo.
Primeiro serviço: Berliner Weisse com pêssego, abacaxi e manga 4,4%. Cervejaria Dádiva
2. Saison do Projeto Biota – Da flor de lírio 5,9%. Cervejaria Zalaz
West Coast IPA – Chinook, Centennial, Mosaic e Cascade 7%. El Cabuloso Resgate de Ned Gonzáles. Cervejaria Juan Caloto.
Rauchweizen doppelbock 7,7%. Cervejaria Alenda Bier.
Baltic Porter – Base 8,4%. Cervejaria Avós.
Wild Italian Grape Ale Cabernet Sauvignon 7,8%. Cosabella.
Sequência das cervejas e rótulos enfim revelados.

 

Da montagem da mesa, com luz e sombra: Mise em scène

“Quando proferimos um discurso em uma palestra ou participamos de um evento de qualquer natureza, existe uma duração delimitada, isto é, o tempo é um fator que deve ser observado para não o extrapolarmos ou para evitar que a experiência se torne maçante. Além disso, é importante assegurar que o palestrante esteja sempre posicionado de forma visível para a audiência.” Jayro P. Neto

A consultoria do Diretor da Cia de Dança Anderson Couto, da Arquiteta e cenógrafa Kelly Yamashita e a fotógrafa Camila Sugai, o corpo artístico do evento, tornaram essa experiência sensorial em algo ainda mais memorável com seus atos. Os atos foram inspirados no espetáculo virtual Corpo Espaço Corpo.

Prazer é fruto de uma relação de contato entre um sujeito e um objeto – e, particularmente, uma relação estética, pois se trata de um input hedônico e perceptivo.”

Nicola Perullo

Cenas com sombra e luz. A intenção do espetáculo dos sentidos.
O serviço da sommelieria em contraste.
O pré evento onde as sombras andam por si, a sós.
As garrafas escondidas, mas presentes. O backstage da limpeza das taças;
Sommeliers à trabalho, no trabalho.
Tudo começa ao abrir uma garrafa.
Concentração antes de ir ao palco.

Ato Final, taças nas caixas e luzes apagadas

Jayro P. Neto, melhor sommelier do Brasil no 5º Campeonato Brasileiro de Sommelier promovido pelo Instituto da Cerveja Brasil (ICB) e também no dia 19/03/2022, no Lobozó, em seus 5 atos.

 

Sommeliers devem ser gente para servir gentedisse Cilene Saorin no prefácio do Guia da Sommelieria de Cervejas, e esse evento foi com certeza um instrumento valioso que lançou sonhos ao vento e garoa na Paulistânia.

Aos nossos comensais, saúde e muito obrigada. Foi um prazer servi-los.

Nossa festa de Babette particular!


Essa foi a perspectiva da sommelière, do backstage, de quem olhou o tecido por trás da cortina. Para termos também a visão de quem participou, pedi ao Marcelo, um dos participantes do evento, que contasse sua experiência, nos desse um depoimento sobre como foi degustar todos os atos. Mais do que um depoimento, ele gentilmente escreveu seus sentimentos. Segue abaixo sua perspectiva:

Noite sensorial em 5 atos – por Marcelo Augusto de Oliveira

São Paulo cidade cosmopolita de múltiplas atividades e emoções, mas eis que numa noite sábado de eventos atmosféricos inconstantes, num pequeno terraço no coração da Vila Madalena, vivencie uma das experiências gastronômicas mais bacanas dos meus anos de vivência por aqui.

Capitaneado pelos excepcionais anfitriões:  Bia Amorim e Jayro Neto, entretive-me por horas num jantar harmonizado com cervejas, que explorou todos os meus 5 sentidos num verdadeiro circo de sabores e aromas.

Para mim, que cresci no interior de São Paulo, os sabores apresentados na noite soaram familiares, com um certo gostinho de infância/adolescência, e toda essa aventura foi regada com 5 rótulos de cervejas nacionais (mais uma de bônus no Gran Finale) escolhidas a dedo.

Falar do banquete em si sem mencionar a ambientação dele seria descrever a noite pela metade. Fomos recepcionados pelos dois menestréis gastro-etílicos na entrada da escadaria que nos levaria ao palco do espetáculo gastronômico, ali um “véu de tecido” que emulava a separação do mundo real do mundo dos dândis que aproveitam os prazeres e sensações da boa comida e bebida foi rompido por eles para nos dar passagem para uma noite de diversões. Visões poéticas a parte o que se seguiu foi uma sucessão de pratos e bebidas harmonizando, que buscaram despertar os diferentes sentidos em 5 atos.

Através de um divertido teatro de sombras, nossos anfitriões realizaram um pequeno espetáculo para apresentar os sentidos (tato/visão/paladar/audição/olfato) que seriam explorados em cada um dos atos do jantar, tudo em sincronia: música, luz/sombras, comida e bebidas formando a ambiência perfeita para maximizar os instantes. Lembrar o barulhinho da rolha sendo ejetada da garrafa me traz agora que escrevo um leve sorriso ao rosto, junto a lembrança do sabor da cerveja no copo servido. Para coroar a sensação de inusitado do evento, uma pequena garoa dividiu o espetáculo em dois tempos, refazendo a dinâmica entre nós os convidados que nos reposicionamos em novos lugares a mesa no salão do restaurante. Novas posições possibilitando novas amizades.

Na mesa, a dinâmica. Foto: Camila Sugai
Na mesa, a dinâmica. Foto: Camila Sugai

A noite trouxe a mim diferentes emoções, a principal: o orgulho da comida da minha terra do meu território, o sentimento de pertencimento proporcionado por tradições gastronômicas de décadas sintetizadas num jantar acompanhado por cervejas escolhidas a perfeição por nossos guias.

Poderia usar inúmeras palavras para descrever as cervejas apresentadas na noite, mas ao invés de focar nas características especificas de cada uma delas, me atenho ao fato de que foram indicadas e pensadas com perfeito equilíbrio. Em alguns atos a bebida potencializando o prato em outros o inverso.

No Gran Finale nossos anfitriões sommelières nos apresentaram uma outra cerveja no ato bônus, encerrando à perfeição essa jornada sensorial.


A toda equipe do Lobozó, nosso grande agradecimento:

Gustavo Rodrigues, o chef da casa.

Marcelo Corrêa Bastos, o chef executivo.

Carlos Alberto Dória, o sociólogo.

Aos garçons, ajudantes e cozinheiros =) saúde!

Mais sobre a culinária da Paulistânia:

Mais sobre o conceito dos Atos e a performance

Corpo Espaço Corpo | Episódio 1 – No Espaço do Corpo https://youtu.be/TiPGb3IZW5Q onde esse time de artista e mais um elenco de artistas fazem uma performance em sombra, corpo, dança, música e luz.

Mais sobre o Guia da Sommelieria de Cervejas, da editora Krater

Leitura e cerveja. Editora Krater lança Guia de Sommelieria, livro que tem tema inédito no país

  • https://catalisi.com.br/guia-da-sommelieria-de-cervejas/
  • https://cesaradames.com/guia-da-sommelieria-de-cervejas/
  • https://guiadacervejabr.com/guia-sommelier-cerveja-formacao-profissionais-setor/

 

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